OS SETE BRADOS DO SALVADOR
SOBRE A CRUZ
ARTHUR W PINK
Traduzido do original em
inglês
The Seven Sayings of the
Saviour on the Cross (1919)
Tradução: Vanderson Moura da
Silva
Biografia de Arthur W. Pink:
Vanderson Moura da Silva
Primeira edição em português:
2006
As citações escriturísticas
utilizadas neste livro são da Edição Revista e Corrigida de Almeida, da
Imprensa Bíblica do Brasil, exceto quando uma outra versão é indicada.
Crédito: Monergismo.com
"Ao Senhor Pertence a
Salvação" (Jonas 2:9)
Reeditado por SusanaCap
Semeadores da Palavra e-books
evangélicos
SUMÁRIO
NOTA DE
AGRADECIMENTO
A presente obra, disponível agora no
portal Monergismo.com, é o terceiro fruto do “Projeto de Tradução”, lançado no
ano passado. Diferentemente dos outros, traduzidos voluntariamente, esse livro
foi traduzido com a generosa doação de um pastor brasileiro que mora em
Portugal. Esperamos que a sua iniciativa em ajudar na divulgação da Palavra de
Deus incentive a muitos outros. Caso queira fazer uma doação ou colaborar como
um tradutor voluntário, por favor, entre em contato pelo seguinte e-mail: traducao@monergismo.com
Aproveitamos esta oportunidade para
reiterar o convite a todos os irmãos que se sentem especialmente capacitados a
trabalhar com literatura cristã sadia a fim de que se unam a este projeto para
a disponibilização gratuita em nossa língua, tão carente da sã teologia e da mais
edificante doutrina, de outras obras de extremo valor.
Soli Deo gloria!
Felipe Sabino de Araújo Neto Cuiabá-MT, 21
de maio de 2006
INTRODUÇÃO
A MORTE DO SENHOR JESUS CRISTO é um
assunto de interesse inexaurível para todos os que estudam em oração a
escritura da verdade. Tal é assim não somente porque tudo do crente — tanto no
tempo como na eternidade — dela dependa, mas também devido à sua singularidade
transcendente. Quatro palavras parecem resumir as características salientes
desse mistério dos mistérios: a morte de Cristo foi natural, nãonatural,
preternatural e sobrenatural. Uns poucos comentários parecem ser necessários à
guisa de definição e amplificação.
Primeiro: a morte de Cristo foi natural.
Com isso queremos dizer que ela foi uma morte real. É porque estamos tão
familiarizados com o fato dela que a declaração acima parece simples,
corriqueira; todavia, o que abordamos aqui é um dos principais elementos de
admiração para a mente espiritual. Aquele que foi “tomado, e pelas mãos de
injustos” [1]
crucificado e assassinado não era outro senão o “Companheiro” [2]
de Jeová. O sangue que foi derramado sobre o madeiro maldito era divino — “A
igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue” (Atos 20:28). Como diz
o apóstolo: “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (2Coríntios
5:19).
Mas como o “Companheiro” de Jeová poderia
sofrer? Como o eterno poderia morrer? Ah, aquele que no princípio era o Verbo,
que estava com Deus, e que era Deus, “se fez carne”. [3]
Aquele que era em forma de Deus tomou sobre si a forma de um servo e foi feito
semelhante aos homens; “e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo,
sendo obediente até à morte e morte de cruz” (Fp 2.8). Dessa forma, tendo se
encarnado, o Senhor da glória foi capaz de sofrer a morte, e assim foi que ele
“provou” a própria morte. Em suas palavras, “Pai, nas tuas mãos entrego o meu
espírito”, [4]
vemos quão natural foi sua morte, e a realidade dela se torna ainda mais
aparente quando ele foi posto na sepultura, onde permaneceu por três dias.
Segundo: a morte de Cristo foi
não-natural. Por isso queremos dizer que ela foi anormal. Acima dissemos que,
ao se encarnar, o Filho de Deus tornou-se capaz de sofrer a morte, todavia, não
deve ser inferido daí que a morte tinha, portanto, um direito a reclamar sobre
ele; longe disso, o contrário mesmo era a verdade. A morte é o salário do
pecado [5],
e ele não tinha nenhum. Antes de seu nascimento foi dito a Maria: “[que] o ente
santo que há de nascer será chamado Filho de Deus” (Lucas 1:35, ARA). Não
somente o Senhor Jesus entrou neste mundo sem contrair a contaminação da
natureza humana caída, mas ele “não cometeu pecado” (1Pedro 2:22), “não [tinha]
pecado” (1João 3:5) e “não conheceu pecado” (2Coríntios 5:21). Em sua pessoa e
em sua conduta ele foi o Santo de Deus “imaculado e incontaminado” (1Pedro
1:19). Como tal, a morte não tinha nenhum direito a reclamar sobre ele. Até
mesmo Pilatos teve que reconhecer que não pôde encontrar “nenhuma culpa” [6]
nele. Por conseguinte, dizemos que o Santo de Deus morrer foi não-natural.
Terceiro: a morte de Cristo foi
preternatural. Por meio disso queremos dizer que ela foi marcada e determinada
para ele de antemão. Ele era o Cordeiro morto antes da fundação do mundo
(Apocalipse 13.8). Antes que Adão fosse criado, a Queda foi antecipada. Antes de o pecado entrar no mundo,
a salvação dele havia sido planejada por
Deus. Nos eternos conselhos da Deidade, foi ordenado de antemão que haveria um Salvador
para os pecadores, um Salvador que sofreria, o justo pelos injustos[7],
um Salvador que morreria para que
pudéssemos viver. E “porque não havia nenhum outro suficientemente bom para
pagar o preço do pecado”, o Unigênito do Pai se ofereceu como o resgate.
O caráter preternatural da morte de Cristo
leva o bom termo de o “sustentáculo da Cruz”. Foi em vista da aproximação dessa
morte que Deus “justamente ignorou os pecados anteriormente cometidos” [8]
(Rm 3.25). Não tivesse sido Cristo, no conceito de Deus, o Cordeiro morto desde
antes da fundação do mundo, toda pessoa pecadora nos tempos do Antigo
Testamento teria sido lançada no abismo no momento em que ela pecasse!
Quarto: a morte de Cristo foi
sobrenatural. Por isso queremos dizer que ela foi diferente de qualquer outra
morte. Em todas as coisas ele tem a preeminência. Seu nascimento foi diferente
de todos os outros nascimentos. Sua vida foi diferente de todas as outras
vidas. E sua morte foi diferente de todas as outras mortes. Isso foi claramente
anunciado em sua própria declaração sobre o assunto: “Por isso, o Pai me ama,
porque dou a minha vida para tornar a tomá-la. Ninguém ma tira de mim, mas eu
de mim mesmo a dou; tenho poder para a dar e poder para tornar a tomá-la. Esse
mandamento recebi de meu Pai” (João 10:17, 18). Um estudo cuidadoso das
narrativas evangélicas que descrevem sua morte fornece uma prova sétupla e a
verificação de sua asseveração.
(1) Que nosso Senhor “deu a sua vida”, que
ele não estava impotente nas mãos de seus inimigos, revela-se claramente em
João 18, onde temos o registro de sua prisão. Um bando de oficiais da parte dos
principais sacerdotes e dos fariseus, guiados por Judas, o procuraram no
Getsêmani. Adiantando-se para encontrá-los, o Senhor Jesus pergunta: “A quem
buscais?”. A resposta foi: “Jesus de Nazaré”; e então nosso Senhor expressou o
inefável título de deidade, aquele pelo qual Jeová se revelou nos tempos
antigos a Moisés na sarça ardente: “Eu Sou”. [9]
O efeito foi impressionante. Esses oficiais ficaram apavorados. Eles estavam na
presença da deidade encarnada, e foram sobrepujados por uma breve consciência
da majestade divina. Quão claro é então que, se assim o tivesse agradado, nosso
bendito Salvador poderia ter se afastado calmamente, deixando aqueles que
vieram lhe prender prostrados no chão! Ao invés disso, ele se entregou nas mãos
deles e foi levado (não compelido) como um cordeiro ao matadouro.
(2) Voltemo-nos agora para Mateus 27:46 —
o versículo mais solene em toda a Bíblia — “E, perto da hora nona, exclamou
Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lamá sabactâni, isto é, Deus meu, Deus
meu, por que me desamparaste?”. As palavras que pedimos ao leitor que observe
cuidadosamente estão colocadas aqui em itálico. Por que é que o Espírito Santo
nos conta que o Salvador pronunciou esse terrível clamor “em alta voz”? Com
muita certeza que há uma razão para tal. Isso se torna ainda mais aparente
quando notamos que ele as repetiu quatro versículos abaixo no mesmo capítulo — “E Jesus, clamando outra vez com grande voz,
entregou o espírito” (Mateus 27.50) . O que então essas palavras indicam? Não
corroboram elas o que foi dito nos parágrafos acima? Não nos dizem elas que o
Salvador não estava exausto pelo que ele tinha passado? Não nos dão elas a
entender que suas forças não o tinham deixado? Que ele ainda era senhor de si
mesmo, que ao invés de ser conquistado pela morte, ele estava apenas se
entregando para ela? Elas não nos mostram que Deus tinha posto “ajuda sobre um
poderoso” (Salmos 89.19, Tradução do Novo Mundo)?
(3) Podemos chamar a atenção para a sua
próxima expressão sobre a Cruz — “Tenho sede”. Essa palavra, à luz do seu
contexto, fornece uma evidência maravilhosa do autocontrole completo do nosso
Senhor. O versículo inteiro diz o seguinte: “Depois, sabendo Jesus que já todas
as coisas estavam terminadas, para que a Escritura se cumprisse, disse: Tenho
sede” (João 19.28). Desde os tempos antigos tinha sido predito que eles
deveriam dar vinagre misturado com fel para o Salvador beber. E para que essa profecia
pudesse ser cumprida, ele exclamou: “Tenho sede”. Como isso evidencia o fato
de que ele estava em plena posse de suas faculdades mentais, que sua mente estava desanuviada, que seus terríveis sofrimentos não a tinham transtornado nem perturbado!
de que ele estava em plena posse de suas faculdades mentais, que sua mente estava desanuviada, que seus terríveis sofrimentos não a tinham transtornado nem perturbado!
Enquanto permanecia pendurado na cruz, no
final da hora sexta, sua mente reviveu o escopo inteiro da palavra profética, e
verificou cada uma daquelas predições que faziam alusão à sua paixão.
Excetuando as profecias que seriam cumpridas após sua morte, só restava uma
ainda não cumprida, a saber: “Deram-me fel por mantimento, e na minha sede me
deram a beber vinagre” (Salmo 69:21), e isso não foi negligenciado pelo bendito
sofredor. “Sabendo Jesus que já todas as coisas estavam terminadas, para que a Escritura
(não ‘Escrituras’, sendo a referência ao Salmo 69.21) se cumprisse, disse:
Tenho sede”. Novamente, dizemos, que prova é fornecida aqui de que ele entregou
sua vida de si mesmo!
(4) A próxima verificação que o Espírito
Santo fornece das palavras do nosso Senhor em João 10.18 é encontrada em João
19.30: “E, quando Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado. E, inclinando a
cabeça, entregou o espírito”. O que se pretende que aprendamos dessas palavras?
O que é que se quer dizer aqui através desse ato do Salvador? Seguramente, a
resposta não está longe. A implicação é clara. Antes disso a cabeça do nosso
Senhor tinha estado erigida. Não era um sofredor impotente que pendia ali
desmaiado. Tivesse esse sido o caso, sua cabeça teria se recostado sobre o
peito, e seria impossível para ele “arqueá-la”. E observe atentamente o verbo
usado aqui: não foi sua cabeça que “caiu”, mas ele, conscientemente,
calmamente, reverentemente, inclinou sua cabeça. Quão sublime foi sua atitude
mesmo sobre o madeiro! Que compostura esplêndida ele evidenciou. Não foi sua
majestosa atitude sobre a cruz que, entre outras coisas, fez com que o
centurião clamasse: “Verdadeiramente, este era o Filho de Deus” (Mateus 27.54)?
1. A PALAVRA DE
PERDÃO
" E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o
que fazem"
Lucas 23:34
Lucas 23:34
O HOMEM HAVIA FEITO O SEU PIOR. Aquele por
quem o mundo foi feito veio ao mundo, mas o mundo não o conheceu. O Senhor da
glória tinha tabernaculado entre os homens, mas não foi desejado. Os olhos que
o pecado tinha cegado não viram nele nenhuma beleza alguma pela qual ele
pudesse ser desejado [10].
Em seu nascimento não havia nenhum quarto na hospedaria, o que prenunciava o
tratamento que receberia das mãos dos homens. Pouco tempo após seu nascimento,
Herodes procurou matá-lo, e isso sugeria a hostilidade que sua pessoa evocava e
predizia a cruz como o clímax da inimizade do homem. Repetidas vezes seus
inimigos tentaram sua destruição. E agora os vis desejos deles fora-lhes
concedidos. O Filho de Deus tinha se rendido nas mãos deles. Um arremedo de
julgamento havia acontecido e, embora seus juízes não tenham encontrado nenhuma
falta nele, todavia, eles se rederam ao clamor insistente daqueles que o
odiavam à medida que eles repetidamente clamavam: “Crucifica-o”.
Uma ação bárbara tinha sido feita. Nenhuma
morte ordinária satisfaria seus inimigos implacáveis. Foi decidida uma morte de
sofrimento e vergonha intensas. Uma cruz tinha sido assegurada: o Salvador seria
pregado nela. E ali ele foi pendurado — em silêncio. Mas nesse instante seus
lábios pálidos são vistos se mexendo — ele está clamando por piedade? Não. O
que então? Ele está pronunciado maldição sobre aqueles que estão lhe
crucificando? Não. Ele está orando, orando pelos seus inimigos — “E dizia
Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lucas 23.34).
Essa primeira das sete palavras na cruz do
nosso Senhor o apresenta em atitude de oração. Quão significante! Quão
instrutivo! Seu ministério público tinha sido aberto com oração (Lucas 3.21), e
aqui vemos ele sendo fechado com oração. Certamente ele nos deixou um exemplo!
Não mais aquelas mãos ministrariam ao doente, pois estavam pregadas no madeiro
cruel; não mais aqueles pés poderiam levá-lo nas tarefas de misericórdia, pois
estavam presas no madeiro cruel; não mais ele poderia se ocupar na instrução
dos apóstolos, pois eles tinham-no esquecido e fugido. Como então ele se
ocupou? No ministério da oração! Que lição para nós.
Talvez essas linhas possam ser lidas por
alguém que, por razão da idade e doença, não é mais capaz de trabalhar
ativamente na vinha do Senhor. Possivelmente nos dias de outrora você era um
professor, um pregador, um professor de escola dominical, um distribuidor de
panfletos: mas agora você está de cama. Sim, mas você ainda está aqui na terra!
Quem sabe Deus não está deixando você aqui mais uns poucos dias para te engajar
no ministério da oração — e talvez realizar mais através disso que por todo seu
ministério passado ativo. Se você for tentado a depreciar tal ministério,
lembre-se do seu Salvador. Ele orou, orou por outros, orou por pecadores, até
mesmo em suas últimas horas.
Ao orar por seus inimigos, Cristo não
somente colocou diante de nós um exemplo perfeito de como devemos tratar
aqueles que nos prejudicam e nos odeiam, mas ele também nos ensinou a nunca
considerar algo como além do alcance da oração. Se Cristo orou por seus
assassinos, então certamente temos encorajamento para orar agora pelo maior de
todos os pecadores! Leitor cristão, nunca perca a esperança. Parece para você
um desperdício de tempo continuar orando por aquele homem, por aquela mulher,
por aquele seu filho obstinado? O caso deles parece se tornar mais sem
esperança a cada dia? Parece como se eles estivem além do alcance da
misericórdia divina? Talvez alguém por quem você tem orado por tanto tempo foi
enlaçado por uma das seitas satânicas de hoje, ou ele pode ser agora um infiel
declarado e desbragado; em resumo, um inimigo aberto de Cristo. Lembre-se então
da cruz. Cristo orou por seus inimigos. Aprenda então a não olhar para nada
como estando além do alcance da oração.
Um outro pensamento concernente a essa
oração de Cristo. Devemos mostrar aqui a eficácia da ração. Essa intercessão de
Cristo na cruz por seus inimigos recebeu uma resposta marcada e definida.
A resposta é vista na conversão das três
mil amas no dia de Pentecoste. Eu baseio essa conclusão em Atos 3.17, onde o
apostolo Pedro diz: “E agora, irmãos, eu sei que o fizestes por ignorância,
como também os vossos príncipes”.
Deve ser notado que Pedro usa a palavra
“ignorância”, que corresponde ao “não sabem o que fazem” do nosso Senhor. Eis
aí a explicação divina dos 3.000 conversos com um simples sermão. Não foi a
eloqüência de Pedro a causa, mas a oração do Senhor. E, leitor cristão, o mesmo
é verdadeiro para nós.
Cristo orou por você e por mim antes de crermos
nele. Volte-se para João 17.20 para conferir. “Eu não rogo somente por estes (os
apóstolos), mas também por aqueles que, pela sua palavra, hão de crer em mim”
(João 17.20). Uma vez mais beneficiemo-nos do exemplo perfeito. Façamos
intercessão
também pelos inimigos de Deus e, se orarmos com fé, também será eficaz para a
salvação dos pecadores perdidos.
também pelos inimigos de Deus e, se orarmos com fé, também será eficaz para a
salvação dos pecadores perdidos.
Para ir diretamente ao nosso texto agora:
“E dizia Jesus: Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
1. Aqui vemos o cumprimento da palavra
profética.
Quanto Deus fez
conhecido de antemão do que deveria suceder naquele dia dos dias! Que retrato
completo o Espírito Santo fornece da Paixão do nosso Senhor com todas as
circunstâncias que a acompanharam! Entre outras coisas, foi predito que o
Salvador deveria “interceder pelos transgressores” (Isaías 53:12, Tradução do
Novo Mundo). Isso não tem referência com o ministério presente de Cristo à
direita de Deus.[11]
É verdade que ele “pode também salvar perfeitamente os que por ele se chegam a
Deus, vivendo sempre para interceder por eles” (Hebreus 7.25), mas isso fala do
que ele está fazendo agora por aqueles que crêem nele, enquanto Isaías 53.12
faz referência ao seu ato gracioso no momento da sua crucificação. Observe que
sua intercessão pelos transgressores está conectada com “e foi contado com os
transgressores; mas ele levou sobre si o pecado de muitos e fez intercessão
pelos transgressores”.
Que Cristo
deveria fazer intercessão pelos seus inimigos era um dos itens da maravilhosa
profecia encontrada em Isaías 53. Esse capítulo nos diz pelo menos dez coisas
sobre a humilhação e o sofrimento do Redentor. Lá, é declarado que ele deveria
ser desprezado e rejeitado pelos homens; que deveria ser um homem de dores e
que sabia o que era sofrer; que ele deveria ser ferido, moído e castigado; que
deveria ser levado, sem resistência, ao matadouro; que deveria permanecer mudo
perante os seus tosquiadores; que deveria não somente sofrer nas mãos de
homens, mas também ser moído pelo Senhor; que deveria derramar sua alma na
morte; que deveria ser enterrado na sepultura de um homem rico; e então foi
adicionado que deveria ser contado com os transgressores; e finalmente, que
deveria fazer intercessão por esses. Aqui então estava a profecia - “e fez
intercessão pelos transgressores”; houve o cumprimento dela - “Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. Ele pensou nos seus assassinos. Ele
implorou por aqueles que lhe crucificaram; ele fez intercessão pelo perdão
deles.
“E dizia Jesus: Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
2. Aqui vemos Cristo identificado com o
seu povo.
“Pai, perdoa-lhes”. Em nenhuma ocasião
anterior Cristo fez tal pedido ao Pai. Nunca antes ele tinha invocado o perdão
dos outros ao Pai. Até aqui ele mesmo perdoou. Ao homem paralítico, ele disse: “Filho,
tem bom ânimo; perdoados te são os teus pecados” (Mt 9.2). À mulher que lavou
seus pés com suas lágrimas, na casa de Simão, ele disse: “Os teus pecados te
são perdoados” (Lc 7.48). Por que, então, ele agora pediu ao Pai para perdoar,
ao invés dele mesmo pronunciar diretamente o perdão?
Perdão de pecado é uma prerrogativa
divina. Os escribas judeus estavam certos quando arrazoaram: “Quem pode perdoar
pecados, senão Deus?” (Mc 2.7). Mas dirá você: Cristo era Deus. Com toda
certeza; mas homem também - o Deus-homem. Ele era o Filho de Deus que tinha se
tornado o Filho do Homem com o expresso propósito de oferecer a si mesmo como
sacrifício pelo pecado. E quando o Senhor Jesus clamou “Pai, perdoa-lhes”, ele
estava sobre a cruz, e ali ele não poderia exercer suas prerrogativas divinas.
Repare cuidadosamente suas palavras, e então contemple a exatidão maravilhosa
da Escritura. Ele tinha dito: “O Filho do Homem tem na terra autoridade para
perdoar pecados” (Mt 9.6). Mas ele não estava mais sobre a terra! Ele tinha
sido “levantado da terra” (Jo 12.32)! Além do mais, na cruz ele estava agindo
como nosso substituto; o justo estava para morrer pelos injustos. Por
conseguinte, ao ser suspenso como nosso representante, ele não estava mais no
lugar de autoridade onde poderia exercer suas prerrogativas divinas, e,
portanto, toma a posição de um suplicante perante o Pai. Assim, dizemos que
quando o bendito Senhor Jesus clamou, “Pai, perdoa-lhes”, o vemos absolutamente
identificado com o seu povo. Não estava mais na posição de autoridade sobre a
“terra”, onde ele tinha o “poder” ou “direito” de perdoar pecados; ao invés
disso, ele intercede pelos pecadores - como nós devemos fazer.
“E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque
não sabem o que fazem”.
3. Aqui vemos a avaliação divina do pecado
e sua culpa conseqüente.
Sob a economia levítica, Deus exigiu que a
expiação devesse ser feita pelos pecados praticados por ignorância.
“Quando alguma pessoa cometer uma
transgressão e pecar por ignorância nas coisas sagradas do SENHOR, então, trará
ao SENHOR, por expiação, um carneiro sem mancha do rebanho, conforme a tua
estimação em siclos de prata, segundo o siclo do santuário, para expiação da
culpa. Assim, restituirá o que ele tirou das coisas sagradas, e ainda de mais acrescentará o seu quinto, e o
dará ao sacerdote; assim, o sacerdote, com o carneiro da expiação, fará
expiação por ela, e ser-lhe-á perdoado o pecado”. (Lv 5.15, 16).
E lemos novamente:
”Quando errardes e não cumprirdes todos
estes mandamentos que o SENHOR falou a Moisés, sim, tudo quanto o SENHOR vos
tem mandado por Moisés, desde o dia em que o SENHOR ordenou e daí em diante,
nas vossas gerações, será que, quando se fizer alguma coisa por ignorância e
for encoberta aos olhos da congregação, toda a congregação oferecerá um
novilho, para holocausto de aroma agradável ao SENHOR, com a sua oferta de
manjares e libação, segundo o rito, e um bode, para oferta pelo pecado. O
sacerdote fará expiação por toda a congregação dos filhos de Israel, e lhes
será perdoado, porquanto foi erro, e trouxeram a sua oferta, oferta queimada ao
SENHOR, e a sua oferta pelo pecado perante o SENHOR, por causa do seu erro”.
(Nm 15. 22-25, ARA). [12]
É em vista de passagens tais como essas
que encontramos Davi orando: “Expurga-me tu dos [erros] que me são ocultos” (Sl
19.12).
O pecado é sempre pecado aos olhos
divinos, quer estejamos consciente dele ou não. Pecados cometidos por
ignorância precisam de expiação tanto quanto os conscientes. Deus é santo, e
ele não rebaixará seu padrão de justiça ao nível da nossa ignorância. Ignorância
não é inocência. Na verdade, ignorância é mais culpada agora do que na época de
Moisés. Nós não temos desculpas pela nossa ignorância. Deus tem revelado clara
e plenamente sua vontade. A Bíblia está em nossas mãos, e não podemos alegar
ignorância de seu conteúdo, exceto para condenar-nos por nossa preguiça. Ele
tem falado, e por sua palavra seremos julgados.
E, todavia, permanece o fato de que somos
ignorantes de muitas coisas, e o erro e a culpa são nossos. E isso não minimiza
a enormidade do nosso delito. Pecados cometidos por ignorância precisam do
perdão divino, assim como a oração do Senhor nos mostra claramente aqui.
Aprenda, então, quão alto é o padrão de Deus, quão grande é a nossa
necessidade, e louve-o por uma expiação de suficiência infinita, que limpa de
todo pecado.[13]
“E dizia Jesus: Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
4. Aqui vemos a cegueira do coração
humano.
“Porque não sabem o que fazem”. Isso não
significa que os inimigos de Cristo eram ignorantes do fato de sua crucificação.
Eles sabiam perfeitamente que tinham clamado: “Crucifica-o”. Eles sabiam
perfeitamente que o seu vil pedido lhes tinha sido concedido por Pilatos. Eles
sabiam perfeitamente que ele tinha sido pregado na cruz, pois eram testemunhas
oculares do crime. O que, então, o Senhor quis dizer quando disse: “Porque não
sabem o que fazem”? Ele quis dizer que eles eram ignorantes da grandeza do seu
crime. Eles não sabiam que era o Senhor da glória que eles estavam
crucificando. A ênfase não é sobre “porque não sabem”, mas sobre “porque não
sabem o que fazem”.
E, todavia, eles deveriam ter sabido. A
cegueira deles era inescusável. As profecias do Antigo Testamento que tinham
recebido seu cumprimento nele eram suficientemente claras para identificá-lo
como o Santo de Deus. Seu ensino era singular, pois seus próprios críticos
foram forçados a admitir: “Nunca homem algum falou assim como este homem” (Jo
7.46). E o que dizer da sua vida perfeita?
Ele viveu diante dos homens uma vida que
nunca tinha sido vivida sobre a terra antes. Ele não agradava a si mesmo. Ele
se ocupava de fazer o bem. Ele estava sempre à disposição dos outros. Não havia
egoísmo nele. Sua vida foi de auto-sacrifício do princípio ao fim. Sua vida foi
sempre
vivida para a glória de Deus. Sobre sua vida estava estampada a aprovação do céu, pois a voz do Pai testificou audivelmente: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo”. [14] Não, não havia escusa alguma para a ignorância deles. Isso apenas demonstrava a cegueira dos seus corações. A rejeição do Filho de Deus por parte deles trouxe pleno testemunho, de uma vez por todas, de que a mente carnal é “inimizade contra Deus” (Rm 8.7).
vivida para a glória de Deus. Sobre sua vida estava estampada a aprovação do céu, pois a voz do Pai testificou audivelmente: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo”. [14] Não, não havia escusa alguma para a ignorância deles. Isso apenas demonstrava a cegueira dos seus corações. A rejeição do Filho de Deus por parte deles trouxe pleno testemunho, de uma vez por todas, de que a mente carnal é “inimizade contra Deus” (Rm 8.7).
Quão triste é pensar que essa terrível
tragédia ainda está sendo repetida! Pecador, você faz pouca idéia do que está fazendo
ao negligenciar a grande salvação de Deus. Você faz pouca idéia de quão
terrível é o pecado de menosprezar o Cristo de Deus e repelir os convites de
sua misericórdia. Você faz pouca idéia da profunda culpa que está unida ao seu
ato de recusar receber o único que pode te salvar dos seus pecados. Você faz
pouca idéia de quão medonho é o crime de dizer: “Não queremos que este reine
sobre nós”.[15]
Você faz pouca idéia do que faz. Você considera essa questão vital com
indiferença total. A questão se apresenta hoje da mesma forma como dantes: “Que
farei, então, de Jesus, chamado Cristo?”.[16]
Pois você tem que fazer algo com ele: ou o despreza e rejeita, ou o recebe como
o Salvador de sua alma e o Senhor da sua vida. Mas, digo novamente, isso lhe
parece um assunto de diminuta urgência, de pequena importância. Por anos você
tem resistido aos esforços do seu Espírito. Por anos você tem posto de lado
essa importantíssima consideração. Por anos você tem endurecido seu coração
contra ele, tampado seus ouvidos aos seus apelos, e fechado seus olhos à sua
excelsa beleza. Ah! você não sabe O QUE faz. Você está cego em sua loucura.
Cego para o seu terrível pecado. Todavia, você não está sem escusa. Você pode
ser salvo agora se quiser.
“Crê
no Senhor Jesus Cristo e [tu] serás salvo”.[17]
Ó, venha ao Salvador agora e diga com alguém de outrora, “Mestre, que eu tenha
vista”.[18]
“E dizia Jesus: Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
5. Aqui vemos uma exemplificação amorosa
do seu próprio ensino.
No Sermão do Monte nosso Senhor ensinou
aos seus discípulos: “Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem,
fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem”
(Mt 5.44). Acima de todos os outros, Cristo praticou o que ele pregou. A graça
e a verdade vieram através de Jesus Cristo.[19]
Ele não somente ensinou a verdade, mas ele mesmo era a verdade encarnada. Ele
disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14.6). Assim, aqui sobre a
cruz ele exemplificou perfeitamente seu ensino do monte. Em todas as coisas ele
nos deixou um exemplo.
Observe que Cristo não perdoou
pessoalmente seus inimigos. Assim, em Mt 5.44 ele não exortou seus discípulos a
perdoarem seus inimigos, mas os exortou a “orar” por eles. Mas nós não devemos
perdoar aqueles que nos maltratam? Isso nos leva a um ponto com respeito ao
qual é necessária muita instrução hoje em dia.
A escritura ensina que sob todas as
circunstâncias devemos perdoar sempre? Eu respondo enfaticamente: não, ela não
ensina. A palavra de Deus diz: “Se teu irmão pecar contra ti, repreende-o; e,
se ele se arrepender, perdoa-lhe; e, se pecar contra ti sete vezes no dia e
sete vezes no dia vier ter contigo, dizendo: Arrependo-me, perdoa-lhe” (Lc
17.3,4). Aqui somos claramente ensinados que uma condição deve ser satisfeita
pelo ofensor antes que possamos pronunciar o perdão. Aquele que nos ofendeu
deve primeiramente “se arrepender”, isto é, julgar a si mesmo por seu erro e
dar evidência de
sua tristeza por causa dele. Mas, suponha que o ofensor não se arrependa? Então eu não
preciso perdoá-lo.
sua tristeza por causa dele. Mas, suponha que o ofensor não se arrependa? Então eu não
preciso perdoá-lo.
Mas que não haja má compreensão do que
queremos dizer aqui. Mesmo que alguém que nos ofendeu não se arrependa,
todavia, eu não devo abrigar sentimentos ruins contra ele.
Não deve haver nenhum ódio ou malícia
cultivada no coração. Todavia, por outro lado, eu não devo tratar o ofensor
como se ele não tivesse cometido nenhum erro. Isso seria fechar os olhos à
ofensa, e, portanto, eu estaria falhando em manter as exigências da justiça, e
isso é o que o crente deve fazer sempre. Deus alguma vez perdoa onde não há
arrependimento? Não, pois a escritura declara: “Se confessarmos os nossos
pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda
injustiça” (1 Jo 1.9). Mais uma coisa. Se alguém me prejudicar e não se
arrepender, embora eu não possa lhe perdoar e tratá-lo como se ele não tivesse
me ofendido, todavia, eu não apenas não devo
abrigar nenhuma malícia em meu coração contra ele, mas devo também orar por ele.
Aqui está o valor do exemplo perfeito de Cristo. Se não podemos perdoar, podemos orar
a Deus para perdoá-lo.
abrigar nenhuma malícia em meu coração contra ele, mas devo também orar por ele.
Aqui está o valor do exemplo perfeito de Cristo. Se não podemos perdoar, podemos orar
a Deus para perdoá-lo.
“E dizia Jesus: Pai,
perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.
6. Aqui vemos a grande e primária
necessidade do homem.
A primeira lição importante que todos
precisam aprender é que somos pecadores, e como tais, inaptos para a presença
de um Deus Santo. É em vão que escolhemos nobres ideais, adotamos boas
resoluções, e aceitamos excelentes regras pelas quais viver, até que a questão
do pecado tenha sido resolvida. Não é de proveito algum tentar desenvolver um
belo caráter e ter por objetivo obter a aprovação de Deus, enquanto há pecado
entre ele e as nossas almas. Qual a utilidade dos sapatos, se os nossos pés
estão paralisados? De que utilidade são os óculos, se somos cegos? A questão do
perdão dos meus pecados é básica, fundamental e vital. Não importa se sou
altamente respeitado por um círculo amplo de amigos, se ainda estou em meus
pecados. Não importa se eu sou honesto em meu negócio, se ainda sou um
transgressor não perdoado aos olhos de Deus. O que importará na hora da morte
será: Os meus pecados foram expurgados pelo sangue de Cristo?
A segunda lição importantíssima que
precisamos aprender é como o perdão dos pecados pode ser obtido. Qual é
fundamento sobre o qual um Deus santo perdoará pecados? E aqui é importante
observar que há uma diferença vital entre o perdão divino e muito do perdão
humano. Como regra geral, o perdão humano é uma questão de complacência,
frequentemente de frouxidão. Queremos dizer que o perdão é mostrado à custa da
justiça e da retidão. Na corte humana da lei, o juiz tem que escolher entre
duas alternativas: quando se prova que alguém no banco dos réus é culpado, o
juiz deve
aplicar a penalidade da lei, ou deve negligenciar os requerimentos da lei - uma é justiça, a outra é misericórdia. A única forma possível na qual o juiz pode tanto aplicar os requerimentos da lei e ainda mostrar misericórdia ao ofensor, é uma terceira parte oferecer sofrer em sua própria pessoa a penalidade que o condenado merece. Assim aconteceu no conselho divino. Deus não exerceria misericórdia à custa da justiça. Ele, como o juiz de toda a terra, não colocaria de lado as demandas da sua santa lei. Todavia, Deus mostraria misericórdia. Como? Através de um que satisfaria plenamente sua lei violada. Por intermédio de seu próprio Filho, tomando o lugar de todos aqueles que
crêem nele e carregando seus pecados em seu próprio corpo no madeiro. Deus poderia
ser justo e ainda misericordioso, misericordioso e ainda justo. Foi assim para que a
“graça reinasse pela justiça”.[20]
aplicar a penalidade da lei, ou deve negligenciar os requerimentos da lei - uma é justiça, a outra é misericórdia. A única forma possível na qual o juiz pode tanto aplicar os requerimentos da lei e ainda mostrar misericórdia ao ofensor, é uma terceira parte oferecer sofrer em sua própria pessoa a penalidade que o condenado merece. Assim aconteceu no conselho divino. Deus não exerceria misericórdia à custa da justiça. Ele, como o juiz de toda a terra, não colocaria de lado as demandas da sua santa lei. Todavia, Deus mostraria misericórdia. Como? Através de um que satisfaria plenamente sua lei violada. Por intermédio de seu próprio Filho, tomando o lugar de todos aqueles que
crêem nele e carregando seus pecados em seu próprio corpo no madeiro. Deus poderia
ser justo e ainda misericordioso, misericordioso e ainda justo. Foi assim para que a
“graça reinasse pela justiça”.[20]
Um fundamento justo tinha sido fornecido
sobre o qual Deus poderia ser justo e ainda o justificador de todo aquele que
crê.[21]
Por conseguinte, somos informados:
“E disse-lhes:
Assim está escrito, e assim convinha que o Cristo padecesse e, ao terceiro dia,
ressuscitasse dos mortos; e, em seu nome, se pregasse o arrependimento e a
remissão (perdão) dos pecados, em todas as nações, começando por Jerusalém” (Lc
24.46,47).
E novamente:
“Seja-vos,
pois, notório, varões irmãos, que por este se vos anuncia a remissão dos
pecados. E de tudo o que, pela lei de Moisés, não pudestes ser justificados,
por ele é justificado todo aquele que crê” (At 13.38, 39).
Foi em virtude do sangue que ele estava
derramando que o Salvador clamou: “Pai, perdoa-lhes”. Foi m virtude do
sacrifício expiatório que ele estava oferecendo que pôde ser dito que “sem
derramamento de sangue não há remissão”.[22]
Ao orar pelo perdão dos seus inimigos,
Cristo foi diretamente na raiz da necessidade deles. E a necessidade deles é a
necessidade de todo filho de Adão. Leitor, você tem os seus pecados perdoados,
isto é, remidos ou levados embora? Você é, pela graça, um daqueles de quem é
dito: “Em quem temos a redenção pelo seu sangue, a saber, a remissão dos
pecados” (Cl 1.14)?
“Então disse Jesus: Pai, perdoa-lhes,
porque não sabem o que fazem”.
7. Aqui vemos o triunfo do amor redentor.
Note atentamente a palavra com a qual
nosso texto começa. “Então”.[23]
O versículo que imediatamente o precede é lido assim: “E, quando chegaram ao
lugar chamado a Caveira, ali o crucificaram e aos malfeitores, um, à direita, e
outro, à esquerda”. Então, disse Jesus, Pai, perdoa-lhes. “Então” – quando o
homem tinha feito o seu pior. “Então” - quando a vileza do coração humano foi
demonstrada em maldade diabólica e climatérica. “Então” - quando com mãos
ímpias a criatura ousou crucificar o Senhor da glória. Ele poderia ter
expressado maldições terríveis sobre eles. Ele poderia ter lançado os raios da
justa ira e os matado. Ele poderia ter feito a terra abrir a sua boca, de forma
que eles caíssem vivos no abismo. Mas não. Embora sujeito à vergonha indizível,
embora sofrendo dor excruciante, embora desprezado, rejeitado, odiado; todavia,
ele clamou: “Pai, perdoa-lhes”. Esse era o triunfo do amor redentor. “O amor é
paciente, é benigno... tudo sofre... tudo suporta” (1Co 13, ARA). Assim foi
demonstrado na cruz.
Quando Sansão chegou na hora da sua morte,
ele usou a grande força do seu corpo para abarcar a destruição de seus
antagonistas; mas aquele que era perfeito exibiu a força de seu amor orando
pelo perdão dos seus inimigos. Graça inigualável! “Inigualável”, dizemos, pois
nem mesmo Estevão conseguiu seguir plenamente o exemplo bendito dado pelo
Salvador. Se o leitor se voltar para Atos 7, descobrirá que o primeiro
pensamento de Estevão foi sobre si mesmo, e depois foi que orou pelos seus
inimigos - “E apedrejaram a Estêvão, que em invocação dizia: Senhor Jesus,
recebe o meu espírito.
E, pondo-se de joelhos, clamou com grande voz: Senhor, não lhes imputes este pecado. E, tendo dito isto, adormeceu” (At 7.59,60). Mas com Cristo a ordem foi inversa: ele orou primeiro pelos seus adversários, e no final por si mesmo. Em todas as coisas ele tem a preeminência.[24]
E, pondo-se de joelhos, clamou com grande voz: Senhor, não lhes imputes este pecado. E, tendo dito isto, adormeceu” (At 7.59,60). Mas com Cristo a ordem foi inversa: ele orou primeiro pelos seus adversários, e no final por si mesmo. Em todas as coisas ele tem a preeminência.[24]
E agora, concluindo com uma palavra de
aplicação e exortação. Se esse capítulo estiver sendo lido por uma pessoa
não-salva, pedir-lhe-emos seriamente ponderar bem a próxima sentença - Quão
terrível deve ser se opor a Cristo e à sua verdade conscientemente! Aqueles que
crucificaram o Salvador não sabiam o que estavam fazendo. Mas, meu leitor, há
um sentido muito real e solene no qual isso é verdade com respeito a você
também. Você sabe que deve receber a Cristo como seu Salvador, que deve
coroá-lo como Senhor de sua vida, que deve tornar a sua primeira e última
preocupação agradá-lo e glorificá-lo. Fique então avisado; seu perigo é grande.
Se você deliberadamente dá as costas a ele, dá as costas ao único que pode
salvá-lo dos seus pecados, e está escrito: “Porque, se pecarmos
voluntariamente, depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não
resta mais sacrifício pelos pecados, mas uma certa expectação horrível de juízo
e ardor de fogo, que há de devorar os adversários” (Hb 10.26,27).
Resta-nos apenas adicionar uma palavra
sobre a bendita inteireza do perdão divino.
Muitos dentre o povo de Deus ficam
intranqüilos e perturbados sobre esse ponto. Eles entendem como é que todos os
pecados que cometeram antes de receberem a Cristo como seu Salvador foram
perdoados, mas amiúde não estão livres de dúvidas com respeito aos pecados que
cometem após terem nascido de novo. Muitos supõem que é possível para eles
pecar de uma forma que lhes coloque além do perdão que Deus lhes concedeu.
Supõem que o sangue de Cristo trata somente com o passado deles, e que até onde
diz respeito ao presente e ao futuro, eles tem que se cuidar por si mesmos. Mas
de que valor seria um perdão que pode ser tirado de mim a qualquer momento?
Certamente não pode haver nenhuma paz estabelecida quando minha aceitação para
com Deus e a minha ida ao céu é feita dependente do meu agarrar-se a Cristo, ou
da minha obediência e fidelidade.
Bendito seja Deus, o perdão que ele
concede cobre todos os pecados - passados, presentes e futuros. Amigo crente,
Cristo não carregou os “seus” pecados em seu próprio corpo no madeiro? E os
seus pecados não eram todos futuros, quando ele morreu? Certamente, pois
naquele tempo você não tinha nascido, e não tinha cometido nenhum pecado
sequer. Muito bem então: Cristo verdadeiramente levou os seus pecados “futuros”
tanto quanto os seus pecados passados. O que a palavra de Deus ensina é que a
alma incrédula é tirada do lugar sem perdão para onde esse está ligado.
Os cristãos são um povo perdoado. Diz o
Espírito Santo: “Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputa o pecado”
(Rm 4.8). O crente está em Cristo, e ali o pecado nunca nos será imputado
novamente. Esse é o nosso lugar ou posição diante de Deus.
Em Cristo é onde ele nos contempla. E
porque estou em Cristo, estou completa e eternamente perdoado; tão perdoado que
o pecado nunca será mais será posto sobre mim como acusação no que toca à minha
salvação, mesmo que eu permanecesse na terra por mais cem anos. Eu estou fora
do alcance para sempre. Ouça o testemunho da escritura: “E, quando vós estáveis
mortos nos pecados e na incircuncisão da vossa carne, (Deus) vos vivificou
juntamente com ele (Cristo), perdoando-vos todas as ofensas” (Cl 2.13). Observe
as duas coisas que são aqui unidas (e o que Deus ajuntou,
não o separe o homem!) - minha união com um Cristo ressurreto é conectada com o meu perdão! Se então minha vida está “oculta com Cristo em Deus” (Cl 3.3), então eu estou fora para sempre do lugar onde a imputação do pecado é aplicada. Por conseguinte, está escrito: “Portanto, agora, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1) - como poderia existir, se “todas as ofensas” foram perdoadas? Ninguém pode lançar nenhuma acusação contra os eleitos de Deus (Rm 8.33). Leitor cristão, junte-se ao escritor em louvor a Deus, pois nós somos eternamente perdoados de tudo. *
não o separe o homem!) - minha união com um Cristo ressurreto é conectada com o meu perdão! Se então minha vida está “oculta com Cristo em Deus” (Cl 3.3), então eu estou fora para sempre do lugar onde a imputação do pecado é aplicada. Por conseguinte, está escrito: “Portanto, agora, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1) - como poderia existir, se “todas as ofensas” foram perdoadas? Ninguém pode lançar nenhuma acusação contra os eleitos de Deus (Rm 8.33). Leitor cristão, junte-se ao escritor em louvor a Deus, pois nós somos eternamente perdoados de tudo. *
2. A PALAVRA DE
SALVAÇÃO
“E disse a Jesus: Senhor,
lembra-te de mim quando entrares no teu reino. E disse-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje
estarás comigo no Paraíso.”
Lucas 23. 42,43
A SEGUNDA DECLARAÇÃO DE CRISTO na cruz foi
feita em resposta ao pedido do ladrão à beira da morte. Antes de considerarmos
as palavras do Salvador ponderaremos primeiro sobre o que as ocasionou.
Não foi acidente algum o fato de o Senhor
da glória ter sido crucificado entre dois ladrões. Nada ocorre por acidente em
um mundo que é governado por Deus. Muito menos poderia ter havido qualquer
acidente naquele dia dos dias, ou em conexão com aquele evento dos eventos — um
dia e um evento que estão situados no próprio centro da história do mundo. Não,
Deus estava presidindo sobre aquela cena. Desde a eternidade toda ele havia
decretado quando e onde e como e com quem seu Filho deveria morrer. Nada foi
deixado ao acaso ou ao capricho do homem. Tudo que Deus tinha decretado veio a
suceder exatamente como ele havia ordenado, e nada aconteceu que não tivesse
ele eternamente intentado. Tudo quanto o homem fez foi simplesmente o que a mão
e o conselho divinos “tinham anteriormente determinado” (At 4.28).
Quando Pilatos deu ordens para que o
Senhor Jesus fosse crucificado entre os dois malfeitores, estava pondo em
execução o decreto eterno de Deus e cumprindo sua palavra profética, coisas que
lhe eram totalmente desconhecidas. Setecentos anos antes que esse dignitário
romano desse sua ordem, Deus tinha declarado mediante Isaías que seu Filho
deveria ser “contado com os transgressores” (Is 53.12). Quão totalmente
improvável parecia isso, que o Santo de Deus devesse ser contado com os ímpios;
que aquele mesmo cujo dedo havia inscrito nas tábuas de pedra da Lei do Sinai
devesse ter um lugar designado entre os sem lei; que o Filho de Deus devesse
ser executado com os criminosos — tal parecia completamente inconcebível.
Todavia, na realidade, foi o que veio a ocorrer. Nem uma só palavra divina
pode-se deixar escapar. “Para sempre, ó Senhor, a tua palavra permanece no céu”
(Sl 119.89). Assim como Deus havia ordenado, e assim como havia anunciado,
assim aconteceu.
Porque ele ordenou que seu Filho devesse
ser crucificado entre dois criminosos?
Certamente que Deus tinha uma razão para
tal; uma boa, uma múltipla razão, quer possamos discerni-la ou não. Ele nunca
procede arbitrariamente. Ele tem um bom propósito para tudo o que faz, pois
todas as suas obras estão ordenadas pela sabedoria infinita. Nesse exemplo particular,
várias respostas se insinuam à nossa inquirição. Não foi nosso bendito Senhor
crucificado com os dois ladrões para demonstrar plenamente as insondáveis
profundezas da vergonha em que havia descido? Em seu nascimento ele estava
rodeado pelas bestas do campo e, agora, em sua morte, é contado com a escória
da humanidade.
da humanidade.
Outra vez, não foi o Salvador contado com
os transgressores para nos mostrar a posição que ele ocupou como nosso
substituto? Ele havia ocupado o lugar que era nosso, e o que era senão o lugar
de vergonha, o lugar dos transgressores, o lugar dos criminosos condenados à
morte!
Outra vez, não foi ele deliberadamente
humilhado daquele modo por Pilatos para mostrar a avaliação pelo homem daquele
inigualável — “desprezado” tanto quanto rejeitado!
Outra vez, não foi ele crucificado com os
dois ladrões, de modo que naquelas três cruzes e nos que nelas estavam
dependurados, pudéssemos ter a representação vívida e concreta do drama da
salvação e da resposta do homem a isso — a redenção do Salvador; o pecador que
se arrepende e crê; e o que insulta e rejeita? [25]
Uma outra importante lição que podemos
aprender da crucificação de Cristo entre os dois ladrões, e o fato de que um o
recebeu e o outro o rejeitou, é a da soberania divina.
Os dois malfeitores foram crucificados
juntos. Estavam à mesma proximidade de Cristo. Ambos viram e ouviram tudo o que
se tornou conhecido durante aquelas seis fatídicas horas. Ambos eram
notoriamente perversos; ambos estavam sofrendo agudamente; ambos estavam
morrendo, e ambos necessitavam urgentemente de perdão. Todavia, um morreu em
seus pecados, morreu como tinha vivido — endurecido e impenitente; ao passo que
o outro se arrependeu de sua maldade, creu em Cristo, recorreu a ele para obter
misericórdia e entrou no Paraíso. Como explicar isso, senão pela soberania de
Deus!
Vemos precisamente que a mesma coisa
continua hoje. Sob exatamente as mesmas circunstâncias e condições, um é
enternecido e outro permanece inalterado. Sob o mesmo sermão, um homem ouvirá
com indiferença, enquanto outro terá seus olhos abertos para ver sua
necessidade e sua vontade movida para perto da oferta da misericórdia divina.
Para um, o evangelho é revelado, para outro, “oculto”. Por quê? Tudo o que
podemos dizer é: “Sim, ó Pai, porque assim te aprouve”. E, contudo, a soberania
divina nunca quer dizer destruir a responsabilidade humana. Ambas são
claramente ensinadas na Bíblia, e é nosso dever crer e pregar as duas, quer
possamos harmonizá-las ou compreendê-las quer não. Ao pregarmos ambas pode parecer
a nossos ouvintes que nos contradizemos, mas que importa?
Disse o falecido C. H. Spurgeon, quando
pregava em 1Timóteo 2.3,4: “Ali no texto se acha, e creio que é do desejo de
meu Pai, que ‘todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade’.
Mas eu sei, também, que ele não o quer, de
modo que salvará a qualquer um daqueles, apenas se crerem em seu Filho; pois
ele no-lo disse repetidas vezes. Ele não salvará homem algum, a menos que esse
abandone seus pecados, e se volte para ele com pleno propósito de coração: isso
eu também sei. E sei, ainda, que ele tem um povo a quem salvará, a quem, por
seu eterno amor, elegeu e a quem, por seu eterno poder, ele libertará. Eu não
sei como aquilo se ajusta com isso, que é mais uma das coisas que não sei.” E
disse esse príncipe dos pregadores: “Eu permanecerei exatamente no que sempre
hei de pregar e sempre tenho pregado, e tomo a palavra de Deus como está, possa
eu reconciliá-la com uma outra parte da palavra divina ou não.”
Dizemos novamente, a soberania de Deus
nunca significa destruir a responsabilidade do homem.
Devemos fazer uso diligente de todos os
meios que ele designou para a salvação das almas. Somos ordenados a pregar o
evangelho a “toda criatura” [26].
A graça é livre: o convite é amplo o bastante para “quem crer” o aceitar.
Cristo não despede ninguém que venha a ele.[27]
Todavia, após havermos feito tudo, após havermos plantado e aguado, é Deus quem
dá o crescimento,[28]
e o faz de modo a melhor satisfazer sua soberana vontade.
Na salvação do ladrão agonizante temos uma
visão clara da graça vitoriosa, como não encontrada em nenhum outro lugar na
Bíblia. Deus é o Deus de toda graça, e a salvação é inteiramente por meio dessa.
“Pela graça sois salvos” (Ef 2.8), e é “pela graça” do começo ao fim. A graça
planejou a salvação, a graça proveu a salvação, e a graça assim opera sobre e
em seus eleitos para sobrepujar a dureza de seus corações, a obstinação de suas
vontades, e a inimizade de suas mentes, e assim os torna propensos a receber a
salvação. A graça inicia, a graça continua, e a graça consuma a nossa salvação.
A salvação pela graça — soberana,
irresistível, livre graça — é ilustrada no Novo Testamento tanto por exemplo
quanto por preceito. Talvez os dois casos mais contundentes de todos sejam os
de Saulo de Tarso e do Ladrão Agonizante. E esse último é até mais digno de
nota que o primeiro. No caso de Saulo, que posteriormente tornou-se Paulo,
apóstolo dos gentios, havia um caráter moral exemplar, para começo de conversa.
Escrevendo anos depois sobre sua condição antes da conversão, o apóstolo
declarou que, no tocante à justiça da lei, ele era “irrepreensível” (Fp 3.6).
Ele era um “fariseu dos fariseus”: meticuloso em seus hábitos, correto em seu
procedimento. Moralmente, seu caráter era imaculado. Após a conversão, sua vida
foi de justiça no padrão evangélico. Constrangido pelo amor de Cristo,
consumiu-se na pregação do Evangelho aos pecadores e no labor da edificação dos
santos. Sem dúvida, nossos leitores concordarão conosco quando dizemos que provavelmente
Paulo estivesse mais perto de atingir os ideais da vida cristã, e que ele
seguiu após seu Mestre mais perto do que qualquer outro santo desde então.
Mas com o ladrão salvo foi, de longe, de
outra forma. Ele não tinha vida moral alguma antes de sua conversão e nenhuma
de serviço ativo depois. Antes dela ele não respeitava nem a lei de Deus nem a
dos homens. Após sua conversão, ele morreu sem ter oportunidade de se ocupar no
serviço de Cristo. Enfatizarei isso, porque essas são as duas coisas que são
consideradas por tantos como fatores que contribuem para nossa salvação.
Supõe-se que devemos primeiro nos adequar, desenvolvendo um caráter nobre
diante de Deus, que nos receberá como seus filhos, e que depois dele haver nos
recebido, para sermos experimentados, somos meramente postos à prova, e que, a
menos que produzamos uma certa qualidade e quantidade de boas obras, “cairemos
da graça e ficaremos perdidos”. Mas o ladrão agonizante não teve boa obra
alguma, seja antes ou depois da conversão. Em conseqüência, somos levados à
conclusão que, se ele foi salvo em absoluto, certamente o foi pela soberana
graça.
A salvação do ladrão agonizante também
arranja um outro apoio para que o legalismo da mente carnal se interponha para
roubar de Deus a glória devida à sua graça. Em vez de atribuir a salvação dos
pecadores perdidos à inigualável graça divina, muitos cristãos professos
procuram explicá-las pelas influências humanas, instrumentalidades e circunstâncias.
Seja o pregador, sejam circunstâncias providenciais ou propícias, sejam as
orações dos crentes, tudo isso é visto como a causa principal. Que não sejamos
mal entendidos aqui. É verdade que Deus com freqüência se agrada de usar meios
para a
conversão dos pecadores; que amiúde condescende em abençoar nossas orações e esforços para levar pecadores a Cristo; que, muitas vezes, ele faz com que suas providências despertem e sacudam os ímpios para a percepção de seus estados. Mas Deus não está preso a essas coisas. Ele não está limitado às instrumentalidades humanas. Sua graça é toda poderosa e, quando lhe agrada, ela é capaz de salvar apesar da falta daquelas, e a despeito das circunstâncias desfavoráveis. Assim foi no caso do
ladrão salvo.
conversão dos pecadores; que amiúde condescende em abençoar nossas orações e esforços para levar pecadores a Cristo; que, muitas vezes, ele faz com que suas providências despertem e sacudam os ímpios para a percepção de seus estados. Mas Deus não está preso a essas coisas. Ele não está limitado às instrumentalidades humanas. Sua graça é toda poderosa e, quando lhe agrada, ela é capaz de salvar apesar da falta daquelas, e a despeito das circunstâncias desfavoráveis. Assim foi no caso do
ladrão salvo.
Considere:
Sua conversão ocorreu numa época quando,
exteriormente, parecia que Cristo havia perdido todo o poder para salvar, seja
a si mesmo ou a outros. Esse ladrão havia marchado ao lado do Salvador através
das ruas de Jerusalém e o tinha visto sucumbir sob o peso da cruz! É altamente
provável que, como sua ocupação fosse a de ladrão e assaltante, esse fosse o
primeiro dia que em que ele punha seus olhos no Senhor Jesus e, agora que o
via, era sob toda a circunstância de fraqueza e desgraça. Seus inimigos estavam
triunfando sobre ele. A maior parte de seus amigos o havia abandonado. A opinião
pública estava unanimemente contra ele. Sua própria crucificação foi considerada
como totalmente inconsistente com sua messianidade. Sua condição humilde foi
uma pedra de tropeço aos judeus desde mesmo o início, e as circunstâncias de sua
morte devem ter intensificado isso, especialmente a alguém que nunca o havia visto
senão em tal condição. Mesmo aqueles que tinham crido nele foram levados à
dúvida por causa de sua crucificação. Não havia ninguém na multidão que estivesse ali com o dedo apontando para ele e gritando: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!”.[29] E, todavia, não obstante tais obstáculos e dificuldades no caminho de sua fé, o ladrão apreendeu a condição de Salvador e o Senhorio de Cristo. Como podemos explicar tal fé e tal compreensão espiritual em alguém em circunstâncias tais como a que se encontrava? Como podemos explicar o fato de que esse ladrão agonizante tomou um homem em sofrimento, sangrando e crucificado por seu Deus!
Não pode ser explicado senão por intervenção divina e operação sobrenatural. Sua fé em Cristo foi um milagre da graça!
dúvida por causa de sua crucificação. Não havia ninguém na multidão que estivesse ali com o dedo apontando para ele e gritando: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!”.[29] E, todavia, não obstante tais obstáculos e dificuldades no caminho de sua fé, o ladrão apreendeu a condição de Salvador e o Senhorio de Cristo. Como podemos explicar tal fé e tal compreensão espiritual em alguém em circunstâncias tais como a que se encontrava? Como podemos explicar o fato de que esse ladrão agonizante tomou um homem em sofrimento, sangrando e crucificado por seu Deus!
Não pode ser explicado senão por intervenção divina e operação sobrenatural. Sua fé em Cristo foi um milagre da graça!
É para ser notado ainda que a conversão do
ladrão ocorreu antes dos fenômenos sobrenaturais daquele dia. Ele exclamou:
“Senhor, lembra-te de mim” antes das horas de trevas, antes do brado
triunfante, “Está consumado”, antes do véu do templo se rasgar, antes do tremor
de terra e do despedaçar das rochas, antes da confissão do centurião: “Na
verdade, este era Filho de Deus”. Deus intencionalmente colocou sua conversão
antes de tais coisas de modo que sua soberana graça pudesse ser engrandecida e
seu soberano poder reconhecido. Ele calculadamente escolheu salvar esse ladrão
sob as circunstâncias mais desfavoráveis para que nenhuma carne se glorie em
sua presença. Ele deliberadamente dispôs essa combinação de condições e
ambiente não propícios para nos ensinar que “a salvação é do Senhor”;[30]
para nos ensinar a não engrandecer a instrumentalidade humana acima da ação
divina; para nos ensinar que toda conversão genuína é o produto direto da
operação sobrenatural do Espírito Santo.
Consideraremos agora o ladrão em si mesmo,
suas várias declarações, seu pedido ao Salvador, e a resposta de nosso Senhor.
“E disse a Jesus: Senhor,
lembra-te de mim, quando entrares no teu reino.
E disse-lhe Jesus: Em
verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso”
(Lucas 23.42,43).
1. Vemos aqui um pecador representativo.
Nunca chegaremos ao centro desse incidente
até considerarmos a conversão desse homem como um caso representativo, e o
próprio ladrão como um caráter representativo. Há aqueles que procuram mostrar
que o caráter original do ladrão penitente era mais nobre e digno do que o do
outro que não se arrependeu. Mas isso não somente não corresponde à verdade dos
fatos nesse caso, como serve para apagar a glória peculiar dessa conversão e
remover dele a maravilha da graça divina. É de grande
importância reparar que, antes do tempo em que um se arrependeu e creu não havia diferença essencial alguma entre os dois. Na natureza, na história, nas circunstâncias eram um. O Espírito Santo foi cuidadoso em nos contar que ambos insultaram o padecente Salvador:
importância reparar que, antes do tempo em que um se arrependeu e creu não havia diferença essencial alguma entre os dois. Na natureza, na história, nas circunstâncias eram um. O Espírito Santo foi cuidadoso em nos contar que ambos insultaram o padecente Salvador:
“E da mesma maneira também os príncipes
dos sacerdotes, com os escribas, e anciãos, e fariseus, escarnecendo, diziam:
Salvou os outros, e a si mesmo não pode salvar-se. Se é o Rei de Israel, desça
agora da cruz, e crê-lo-emos. Confiou em Deus; livre-o agora, se o ama; porque
disse: Sou Filho de Deus. E o mesmo lhe lançaram também em rosto os salteadores
que com ele estavam crucificados” (Mateus 27.41-44).
Realmente terríveis eram a condição e a
ação desse assaltante. À beira de adentrar a eternidade ele se une aos inimigos
de Cristo no terrível pecado de escarnecer dele. Era de uma torpeza sem
paralelo. Pense nisso — um homem na hora em que se aproximava sua morte
ridicularizando o Salvador padecente! Ó que demonstração de depravação humana e
de inimizade natural da mente carnal contra Deus. E, leitor, por natureza há a
mesma depravação herdada dentro de você, e a menos que um milagre da divina graça
seja operado dentro de você, existe a mesma inimizade contra Deus e seu Cristo
presente em seu coração. Você pode não pensar assim, pode não sentir assim,
pode não crer assim. Mas isso não altera o fato. A palavra dele que não pode
mentir declara: “Enganoso é o coração, acima de todas as coisas, e
desesperadamente perverso” [31]
(Jr 17.9). Essa é uma declaração de aplicação universal. Ela descreve o que
todo coração humano é por nascimento natural. E outra vez a mesma escritura da
verdade declara: “porque a mentalidade da carne significa inimizade com Deus,
visto que não está em sujeição à lei de Deus; de fato, nem pode estar” (Romanos
8.7, Tradução do Novo Mundo). Isso, também, diagnostica o estado de todo
descendente de Adão. “Porque não há diferença. Porque todos pecaram e
destituídos estão da glória de Deus” (Rm 3.22,23). Inefavelmente solene é isso:
todavia, necessita que nele se insista. Não é senão quando percebemos nossa desesperadora
condição que descobrimos a necessidade de um Salvador divino. Não é senão
quando somos levados a perceber nossa total corrupção e fraqueza que nos
apressamos ao grande médico. Não é senão quando encontramos nesse ladrão
agonizante um retrato de nós mesmos que o acompanharemos dizendo: “Senhor,
lembra-te de mim”.
Temos que ser humilhados antes de sermos
exaltados. Temos de ser despidos dos trapos imundos de nossa justiça própria
antes que estejamos prontos para os trajes de salvação.
Temos de vir a Deus como mendigos, de mãos
vazias, antes que possamos receber o dom da vida eterna. Temos de tomar o lugar
de pecadores perdidos perante ele se quisermos ser salvos. Sim, temos que
reconhecer a nós mesmos como ladrões antes que possamos ter um lugar na família
de Deus. “Mas”, dirá você, “eu não sou nenhum ladrão! Reconheço que não sou
tudo que devo ser. Não sou perfeito. Na verdade, vou ao ponto de admitir a mim
mesmo como pecador. Mas não posso consentir que esse ladrão represente meu
estado e condição.” Ah, amigo, seu caso é, de longe, pior do que você
supõe. Você é um ladrão, e ladrão da pior espécie. Você rouba a Deus! Suponha que uma firma no Leste designasse um agente para representá-la no Oeste, e que mensalmente lhe enviasse seu salário.
supõe. Você é um ladrão, e ladrão da pior espécie. Você rouba a Deus! Suponha que uma firma no Leste designasse um agente para representá-la no Oeste, e que mensalmente lhe enviasse seu salário.
Mas suponha também que, no fim do ano, os empregadores
descobrissem que, ainda que o agente estivesse descontando os cheques a ele
remetidos, ele tivesse servido uma outra firma durante o tempo todo. Não seria aquele
agente um ladrão? Todavia, tal é precisamente a situação e o estado de cada
pecador. Ele foi enviado a esse mundo por Deus, que o dotou de talentos e da capacidade de usá-los e valorizá-los. Deus o abençoa com saúde e vigor; supre cada necessidade sua, e fornece inúmeras oportunidades para servi-lo e glorificá-lo. Mas com que resultado? As próprias coisas que Deus lhe dá são mal empregadas. O pecador serve a um outro senhor, precisamente Satanás. Ele dissipa seu vigor e desperdiça seu tempo nos prazeres pecaminosos. Ele rouba a Deus. Leitor não salvo, na perspectiva do Céu, sua condição é desesperadora e seu coração, mau como o daquele ladrão. Veja nele uma figura de si mesmo.
pecador. Ele foi enviado a esse mundo por Deus, que o dotou de talentos e da capacidade de usá-los e valorizá-los. Deus o abençoa com saúde e vigor; supre cada necessidade sua, e fornece inúmeras oportunidades para servi-lo e glorificá-lo. Mas com que resultado? As próprias coisas que Deus lhe dá são mal empregadas. O pecador serve a um outro senhor, precisamente Satanás. Ele dissipa seu vigor e desperdiça seu tempo nos prazeres pecaminosos. Ele rouba a Deus. Leitor não salvo, na perspectiva do Céu, sua condição é desesperadora e seu coração, mau como o daquele ladrão. Veja nele uma figura de si mesmo.
2. Aqui nós vemos que o homem tem que ir
ao fim de si próprio antes que possa ser salvo.
Contemplamos acima esse ladrão agonizante
como um pecador representativo, um espécime que é amostra do que todos os homens
são por natureza e prática — por natureza, em inimizade contra Deus e seu
Cristo; por prática, ladrões de Deus, utilizando mal o que ele nos deu e não
conseguindo retribuir-lhe o que é devido.
Devemos ver agora que esse ladrão
crucificado foi também um caso representativo em sua conversão.
E nesse ponto deter-nos-emos unicamente em
sua situação de desamparo.
Ver a nós mesmos como pecadores perdidos
não basta. Aprender que somos corruptos e depravados por natureza e
transgressores pecaminosos pelas nossas práticas é a primeira lição importante.
A próxima é aprender que estamos totalmente arruinados, e que não podemos fazer
nada que seja para ajudar a nós mesmos. Descobrir que nossa condição é tão
desesperadora que está inteiramente além da possibilidade de conserto humano, é
o segundo passo rumo a salvação — olhando-a pelo lado humano. Porém, se o homem
é lento para aprender que é um pecador perdido e inapto para estar na presença
de um Deus santo, ele o é ainda mais para reconhecer que nada pode fazer para
sua salvação, e que é incapaz de operar qualquer melhoria em si próprio para se
adequar para Deus. Todavia, não é senão até que nos demos conta de que estamos
“fracos” (Rm 5.6), que somos “impotentes” [32]
(Jo 5.3), que não é pelas obras de justiça que façamos, mas pela misericórdia
divina que somos salvos (Tt 3.5), que não é senão até que nos desesperemos de
nós mesmos, e olhemos para fora de nós mesmos para um que pode nos salvar.
O grande tipo escriturístico do pecado é a
lepra, e para a lepra o homem não pode inventar cura alguma. Somente Deus pode
lidar com essa pavorosa doença. Assim o é com o pecado. Mas, como dissemos, o
homem é lento para aprender essa lição. É como o filho pródigo, o qual, quando
dissipara sua fazenda na terra longínqua, vivendo dissolutamente, e começou “a
padecer necessidades”, em vez de imediatamente retornar ao seu pai, “foi, e
chegou-se a um dos cidadãos daquela terra”, e foi para os campos a apascentar
porcos; em outras palavras, ele foi ao trabalho [33].
Igualmente, o pecador que é despertado para a sua necessidade, em vez de ir
imediatamente a Cristo, tenta trabalhar por si mesmo para obter o favor divino.
Mas ele não conseguirá coisa melhor que o pródigo — as bolotas dos porcos serão
sua única porção. Ou então, como a mulher prostrada pela enfermidade por muitos
anos. Ela tentou muitos médicos antes de procurar o grande médico: assim o
pecador despertado procura alívio e paz primeiro numa coisa e depois em outra,
até completar o fatigante ciclo das ações religiosas, e terminar “sem nenhum
resultado, mas cada vez piorando mais” (Mc 5.26, Bíblia de Jerusalém). Não, não
é senão quando já tinha “gasto tudo o que possuía” que ela procurou Cristo; e
não é senão quando o pecador chega ao fim de seus próprios recursos que
recorrerá ao Salvador.
Antes que qualquer pecador possa ser salvo, deve ele ir ao
lugar da fraqueza reconhecida. Isso é o que a conversão do ladrão agonizante
nos mostra. O que ele podia fazer? Não podia caminhar pelas sendas da justiça,
pois havia um prego atravessando cada um dos seus pés. Não podia executar
nenhuma boa obra, pois havia um prego atravessando cada uma das mãos. Não podia
começar vida nova e viver melhor, pois que estava morrendo. E, meu leitor,
aquelas suas mãos que tão prontamente agem para justiça própria, e aqueles seus
pés que tão rapidamente correm no caminho da obediência legal, devem ser
pregados na cruz. O pecador teve de ser interrompido em suas próprias obras e
feito desejoso de ser salvo por Cristo. Uma percepção de sua própria condição
pecaminosa, de sua condição perdida, de sua condição de desamparo, não é nada
mais, nada menos, do que o velho ensino da convicção de pecado, e tal é o único
pré-requisito para vir a Cristo para salvação, pois Cristo Jesus veio ao mundo
para salvar pecadores.
3. Aqui vemos o sentido do arrependimento
e da fé
O arrependimento pode ser considerado sob
vários aspectos. Ele inclui em seu significado e escopo uma mudança da mente
acerca de, um desgosto por e um abandono do pecado. Todavia, há mais do que
isso. Realmente, o arrependimento é a percepção de nossa condição perdida, é a
descoberta de nossa ruína, é o julgamento de nós mesmos, é a confissão de nossa
situação perdida. Não é tanto um processo intelectual, mas a consciência ativa
na presença de Deus. E isso é exatamente o que achamos aqui no caso do ladrão.
Primeiro ele diz ao seu companheiro: “Tu nem ainda temes a Deus, estando na
mesma condenação?” (Lucas 23.40). Pouco tempo antes sua voz estivera confundida
com a daqueles que estavam vilipendiando o Salvador. Mas o Espírito Santo
estivera em ação sobre ele e, agora, sua consciência fica ativa na presença de
Deus. Não disse ele: “Tu nem ainda temes o castigo”, mas: “Tu nem ainda temes a
Deus?” Ele compreende Deus como sendo juiz.
E então, em segundo lugar, ele acrescenta:
“E nós, na verdade, com justiça, porque recebemos o que os nossos feitos
mereciam” (Lucas 23.41). Aqui vemo-lo reconhecendo sua culpa e a justiça de sua
condenação. Ele pronuncia sentença contra si mesmo. Ele não se desculpa e não
tenta atenuar nada. Ele reconheceu que era um transgressor, e que, enquanto
tal, ele merecia plenamente a punição por seus pecados, sim, que a morte lhe
era devida. Você teve essa posição diante de Deus, meu leitor? Confessou
abertamente a ele seus pecados? Já sentenciou a si mesmo e a seus caminhos?
Está pronto para reconhecer que a morte é o que você merece? Suavize você o seu
pecado ou prevarique acerca dele, estará impedindo a sua própria entrada a
Cristo. Ele veio ao mundo para salvar pecadores — pecadores confessos,
pecadores que realmente tomaram o lugar de pecadores diante de Deus, pecadores
que estão cônscios de que estão perdidos e arruinados.
O “arrependimento para com Deus” do ladrão
foi acompanhado da “fé em nosso Senhor Jesus”.[34]
Ao contemplar sua fé notamos primeiro que ela foi uma fé de cabeça inteligente.
Nos parágrafos iniciais do presente capítulo chamamos a atenção para a
soberania de Deus e sua graça irresistível e vitoriosa que foram exibidas na
conversão desse ladrão. Agora nos voltaremos a um outro lado da verdade, igualmente
necessário de nele se insistir, um lado que não é contraditório com o que
dissemos anteriormente, mas antes complementar e suplementar. A Escritura não
ensina que, se Deus elegeu uma certa alma para ser salva, tal pessoa será salva
independente dela vir a crer ou não. Essa é uma conclusão falsa tirada por
aqueles que rejeitam a verdade. Não, a escritura ensina que o mesmo Deus que
predestinou o fim também predestinou os meios. O Deus que decretou a salvação
do ladrão agonizante cumpriu seu decreto dando a ele fé com a qual crer. Isso é
o claro ensinamento de 2Tessalonicenses 2.13 (e de outras escrituras): “Deus
vos escolheu desde o princípio para a santificação do espírito e a fé na
verdade”.
É justamente isso que vemos aqui em
conexão com esse ladrão. Ele teve “fé na verdade”. Sua fé se apossou da palavra
de Deus. Sobre a cruz estava a inscrição: “Este é Jesus, o Rei dos Judeus”.[35] Pilatos a havia colocado ali por mofa. Porém,
ainda assim era a verdade, e após ele tê-la escrito, Deus não permitiria a ele
que a alterasse. A tabuleta que portava essa inscrição havia sido carregada na
frente de Cristo pelas ruas de Jerusalém e no lugar da crucificação, e o ladrão
a lera, e a graça e o poder divinos tinham abertos os olhos de seu entendimento
para ver que ela era verdadeira. Sua fé apanhou o sentido do reinado de Cristo,
daí mencionar “quando entrares no teu reino”. A fé repousa sempre na palavra
escrita de Deus.
Antes que um homem creia que Jesus é o
Cristo, deve ter o testemunho diante dele de que ele é o Cristo. A distinção é
freqüentemente feita entre a fé da cabeça e a fé do coração, e isso com
propriedade, pois a distinção é real, e vital. Algumas vezes a fé da cabeça é
desvalorizada, mas isso é tolice. Deve haver essa antes que possa haver aquela.
Temos de crer intelectualmente antes que possamos crer salvificamente no Senhor
Jesus. Prova disso é vista em conexão com os pagãos: eles não têm fé alguma de
cabeça e, por conseguinte, não têm fé nenhuma de coração. Prontamente admitimos
que a fé de cabeça não salvará a menos que seja acompanhada pela fé do coração,
mas insistimos que não há nada da segunda a menos que antes tenha havido a
primeira. Como podem crer naquele a respeito de quem não ouviram? [36] Verdade, pode-se crer acerca dele sem crer
nele, mas não se pode crer nele sem primeiro crer acerca dele. Assim o foi com
o ladrão agonizante. Com toda probabilidade ele nunca vira Cristo antes do dia
da sua morte, mas vira a inscrição testificando o seu reinado e o Espírito
Santo usou isso como a base de sua fé. Dizemos então que essa foi uma fé
inteligente: primeiro, uma de tipo intelectual, o crer no testemunho escrito
apresentado a ele; segundo, uma fé de coração, o descansar confiadamente em
Cristo mesmo como o Salvador dos pecadores.
Sim, esse ladrão que agonizava exerceu uma
fé de coração que descansou salvificamente em Cristo. Tentaremos ser muito
simples aqui. Um homem pode ter fé de cabeça no Senhor Jesus e estar perdido.
Um homem pode crer acerca do Cristo histórico e não estar nada melhor por causa
disso, tal como não o está por crer acerca do Napoleão histórico. Leitor, você
pode crer tudo acerca do Salvador — sua vida perfeita, sua morte sacrifical,
sua ressurreição vitoriosa, sua ascensão gloriosa, seu retorno prometido — mas
deve fazer mais do que isso. A fé evangélica é uma fé confiante. A fé salvífica
é mais que uma opinião correta ou uma linha de raciocínio. A fé salvífica
transcende a toda razão. Veja o ladrão agonizante! Era razoável que Cristo o
notasse? Um assaltante crucificado, um criminoso confesso, alguém que há poucos
minutos atrás o estivera insultando! Era razoável que o Salvador devesse
reparar de qualquer forma nele? Era razoável esperar que ele fosse ser
transportado da beira do inferno mesmo para o Paraíso? Ah, meu leitor, a cabeça
raciocina, mas o coração não. E a petição desse homem veio do coração. Ele não
tinha como usar suas mãos e pés (e não eram eles necessários à salvação: antes,
a impediam), mas tinha o uso de seu coração e língua. Esses estavam livres para
crer e confessar: “Visto que com o coração se crê para a justiça, e com a boca
se faz confissão para a salvação” (Rm 10.10).
Podemos reparar também que a sua fé era
uma fé humilde. Ele orou com conveniente modéstia. Não foi “Senhor, honra-me”,
nem “Senhor, exalta-me”, mas Senhor, se tu quiseres, pense em mim! Se tu
somente contemplasses a mim — “Senhor, lembra-te de mim”. E, todavia, aquela
palavra “lembra-te” era maravilhosamente perfeita e apropriada. Ele poderia ter
dito: Perdoa-me, Salva-me, Abençoa-me; mas “lembra-te” incluía todas essas. Um
interesse no coração de Cristo incluirá um interesse em todos os seus
benefícios! Além disso, tal palavra era bem adequada à condição de quem a expressou.
Ele foi um proscrito da sociedade — quem se lembraria dele! O público não pensaria
mais nada a respeito dele. Seus amigos ficariam contentes por esquecer dele por
haver desgraçado sua família. Mas há um a quem ele ousa confiar essa petição — “Senhor,
lembra-te de mim”.
Finalmente, podemos notar que a sua fé era
uma fé corajosa. Talvez não pareça à primeira vista, mas uma pequena
consideração tornará isso claro. Aquele que estava pendurado na cruz do centro
era um de quem todos viravam a cara para não olhar e para quem toda a vil
zombaria de uma turba vulgar era direcionada. Toda facção daquele povo se
juntou para escarnecer do Salvador. Mateus nos diz que “os que passavam
blasfemavam dele” e que “da mesma maneira também os príncipes dos sacerdotes,
com os escribas, e anciãos”. Enquanto Lucas nos informa que “também os soldados
o escarneciam” (23.36). Portanto, é fácil entender por que os ladrões também se
juntaram ao alarido de sarcasmos. Não há dúvidas de que os sacerdotes e
escribas sorrissem benignamente sobre eles enquanto assim agiam.
Mas, subitamente, houve uma mudança. O
ladrão penitente, em vez de continuar a troçar e ridicularizar Cristo, volta-se
para o seu companheiro e abertamente o censura, nos ouvidos dos espectadores
ajuntados em redor das cruzes, clamando: “este nenhum mal fez”. Desse modo, ele
condenou toda a nação judaica! Mais ainda; não somente testemunhou da inocência
de Cristo, mas também confessou o reinado dele. E assim, de um só golpe, ele se
retira do favor de seu companheiro e da multidão também! Falamos hoje da
coragem necessária para abertamente testemunhar de Cristo, mas tal coragem
nesses dias se desbota em expressa insignificância perante àquela mostrada
naquele dia pelo ladrão agonizante.
4.Vemos aqui um maravilhoso caso de
iluminação espiritual.
É perfeitamente maravilhoso o progresso
feito por esse homem naquelas poucas horas de agonia. Seu crescimento na graça e no
conhecimento de seu Senhor foi
espetacular. Do breve registro das palavras que saíram de seus lábios podemos
descobrir sete coisas as quais ele havia aprendido sob a instrução do Espírito
Santo.
Primeiro, ele expressa sua crença em uma
vida futura onde a retribuição seria dada por um Deus justo e que vinga o
pecado. Prova-o a frase “Tu nem ainda temes a Deus”. Ele passa uma severa
reprimenda em seu companheiro, como quem diz, Como ousa você ter a temeridade
de insultar a esse homem inocente? Lembre-se de que brevemente você terá de
aparecer diante de Deus e encarar um tribunal infinitamente mais solene do que aquele
que o sentenciou para ser crucificado. Deus é para ser temido, portanto, fique quieto.
Segundo, como tenho visto, ele viu sua
própria pecaminosidade — “Tu... [não estás] na mesma condenação? E nós, na
verdade, com justiça, porque recebemos o que os nossos feitos mereciam” (Lc
23.40,41). Ele reconheceu que era um transgressor. Ele viu que o pecado merecia
punição, que a “condenação” era justa. Ele admitiu que a morte era o que ele
merecia. Isso foi algo que seu companheiro não confessou nem reconheceu.
Terceiro, ele testemunhou da
impecabilidade de Cristo — “este nenhum mal fez” (Lc 23.41). E aqui podemos
observar que Deus se deu ao trabalho de preservar o caráter imaculado de seu
Filho. Isso é especialmente visto perto do fim. Judas foi levado a dizer,
“[Traí] o sangue inocente”. Pilatos testificou, “nenhum crime acho nele”.[37]
A esposa desse disse: “Não entres na questão desse justo”.[38]
E agora que ele pendia na cruz, Deus abre os olhos desse assaltante para ver a
perfeição de seu Filho amado, e abre seus lábios para que ele testemunhe de sua
excelência.
Quarto, ele não apenas testemunhou da
humanidade impecável de Cristo, mas também confessou sua Divindade — “Senhor,
lembra-te de mim”, disse. Maravilhosa palavra, essa. O Salvador pregado ao
madeiro, o objeto da aversão dos judeus e alvo de zombaria do populacho
ordinário. Esse ladrão ouvira o insolente desafio dos sacerdotes: “Se és Filho
de Deus, desce da cruz”, e resposta alguma fora dada. Mas, movido por fé e não
por vista,[39]
reconhece e confessa a deidade do sofredor que estava ao centro.
Quinto, ele creu na condição de salvador
do Senhor Jesus. Tinha ouvido a oração de Cristo por seus inimigos, “Pai,
perdoa-lhes...” e àquele cujo coração o Senhor tinha aberto, essa curta frase
tornou-se um sermão de salvação. Seu próprio clamor, “Senhor, lembra-te de
mim”, trazia dentro de si seu escopo, “Senhor, salva-me”, o que, por
conseguinte, faz supor sua fé no Senhor Jesus como Salvador. Na verdade, ele
deve ter crido que Jesus era um Salvador para o principal dos pecadores [40]
ou então, como poderia ter crido que Cristo lembrar-se-ia de alguém tal como
ele!
Sexto, ele demonstrou sua fé no reinado de
Cristo — “quando entrares no teu reino”. Isso também foi uma palavra
maravilhosa. As circunstâncias externas todas pareciam desmentir seu reinado.
Em vez de estar sentado num trono, ele estava pendurado numa cruz. Em vez de
estar usando um diadema real, sua fronte estava rodeada de espinhos. Em vez de
estar acompanhado por um séqüito de servos, ele estava contado com os
transgressores. Entretanto, ele era rei — Rei dos Judeus (Mt 2.2).
Finalmente, ele ansiou pela segunda vinda
de Cristo — “quando entrares”. Ele olhou para longe do presente e para o
futuro. Ele viu além dos “sofrimentos”, a “glória” [41].
Sobre a cruz o olho da fé detectou a coroa. E nisso ele se antecipou aos
apóstolos, pois a incredulidade fechara os olhos deles. Sim, ele olhou para
além do primeiro advento em vergonha para o segundo, em poder e majestade.
E como podemos explicar a inteligência
espiritual desse ladrão agonizante? Onde ele recebeu tal insight das coisas de
Cristo? Como foi que esse bebê em Cristo fez tão estupendo progresso na escola
de Deus? Somente pode ser explicado pela influência divina. O Espírito Santo
foi seu professor! A carne e o sangue não lhe haviam revelado tais coisas mas o
Pai no céu.[42]
Que ilustração de que as coisas divinas estão escondidas “dos sábios e
entendidos” e reveladas aos “pequeninos”! [43]
5.Aqui vemos a condição de Cristo como
Salvador.
As cruzes estavam separadas por apenas uns
poucos decímetros e não demorou a que o Salvador ouvisse o clamor do ladrão
penitente. Qual foi sua resposta a isso? Ele poderia ter dito, Você merece esse
destino: é um assaltante malvado e é digno de morte. Ou, poderia ter replicado,
Você deixou isso tarde mais; você deveria ter me procurado antes. Ah! mas não
prometera ele que “o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora”? [44]
Isso ele provou aqui.
Aos vitupérios que foram lançados sobre
ele pela multidão, o Senhor Jesus não prestou atenção. Ao desafio insolente dos
sacerdotes para que descesse da cruz, ele não deu resposta alguma. Mas à oração
desse ladrão contrito e confiante atentou. Nessa hora ele estava em luta contra
os poderes das trevas e suportando a terrível carga da culpa de seu povo, e
deveríamos ter pensado que ele poderia se escusar a atender a petições
individuais. Ah! mas um pecador nunca virá a Cristo em tempo não aceitável.[45] Ele sem demora lhe dá uma resposta de paz.
A salvação do ladrão penitente e crente
ilustra não somente a prontidão de Cristo, mas também seu poder para salvar
pecadores. O Senhor Jesus não é um Salvador débil. Bendito seja Deus que é
capaz de “salvar perfeitamente” [46]
aqueles que vem a ele através daquele. E nunca isso foi tão destacadamente
mostrado como na cruz. Essa foi a hora da “fraqueza” do Redentor (2Co 13.4).
Quando o ladrão clamou, “Senhor, lembra-te de mim”, o Salvador estava em agonia
no madeiro maldito. Todavia, mesmo então, mesmo ali, ele teve poder para
redimir essa alma da morte e lhe abrir os portais do Paraíso! Nunca duvide, portanto,
ou questione a suficiência infinita do Salvador. Se um Salvador agonizante pôde
salvar, muito mais depois que ressurgiu em triunfo da sepultura, para nunca
mais morrer! Ao salvar esse ladrão, Cristo deu uma mostra de seu poder na hora
mesma em que esse estava quase obscurecido.
A salvação do ladrão agonizante demonstra
que o Senhor tem o desejo e é apto para salvar todos os que vêm até ele. Se
Cristo recebeu esse ladrão penitente e crente, então ninguém precisa se
desesperar de não ser bem recebido se tão-somente vier a ele. Se esse
assaltante em agonia não estava além do alcance da misericórdia divina, então
ninguém que solicite a graça divina ficará sem resposta. O Filho do Homem veio
“buscar e salvar o que se havia perdido” (Lc 19.10), e ninguém pode estar numa
condição pior do que essa. O evangelho de Cristo é o poder de Deus “para todo
aquele que crê” (Rm 1.16). Ó, não limite a graça divina! Um Salvador é
fornecido até para o “principal” dos pecadores (1Tm 1.15), se tão-somente ele
crer. Mesmo aqueles que chegam à hora da morte ainda em seus pecados não ficam
sem esperança.
Pessoalmente creio que muito, muito poucos
sejam salvos num leito de morte, e são as raias da loucura qualquer homem
postergar sua salvação até lá, pois não há garantia nenhuma de que terá ele um
leito de morte. Muitos são cortados subitamente, sem qualquer oportunidade de
deitar e morrer. Todavia, mesmo alguém naquele lugar não está além do alcance
da misericórdia divina. Como disse um puritano, “há um caso tal registrado para
que ninguém precise se desesperar, mas apenas um, na escritura, para que
ninguém possa abusar”.
Sim, aqui vemos a condição de Cristo como
Salvador. Ele veio a este mundo para salvar pecadores, e o deixou e foi ao
Paraíso acompanhado por um criminoso salvo — o primeiro troféu de seu sangue
redentor!
6. Aqui vemos o destino dos salvos na
morte.
Em seu esplêndido livro, The Seven Sayings
of Christ on the Cross, Dr. Anderson-Berry assinala que a palavra “Hoje” não
está corretamente colocada na tradução de nossas versões tradicionais, e que a
designada correspondência entre o pedido do ladrão e a resposta de Cristo
requer uma construção diferente no último. A forma da réplica de Cristo tem o
evidente desígnio de fazer a correspondência em sua ordem de pensamento à
petição do assaltante. Tal será visto se dispormos as duas em quadros
paralelos, como segue:
E disse
a Jesus
|
E
disse-lhe Jesus
|
Senhor
|
Em
verdade te digo
|
Lembra-te
de mim
|
Estarás
comigo
|
Quando
entrares
|
Hoje
|
No teu
reino
|
No
Paraíso
|
Ao ordenarmos assim as palavras, descobrimos a ênfase
correta. “Hoje” é a palavra enfática. Na graciosa resposta de nosso Senhor ao
pedido do ladrão temos uma ilustração contundente de como a graça divina excede
as expectativas humanas. O ladrão rogou para que o Senhor se lembrasse dele em
seu reino vindouro, mas Cristo lhe assegura que antes que aquele dia mesmo
tivesse passado ele estaria com o Salvador. O ladrão pede para ser lembrado em
um reino terreno, mas Cristo assegura a ele um lugar no Paraíso. O ladrão simplesmente
pede para ser lembrado, mas o Salvador declarou que deveria estar com ele.
Assim Deus faz abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos.[47]
Não somente a resposta de Cristo significa a sobrevivência da
alma após a morte do corpo, mas nos diz que o crente está com ele durante o
intervalo que faz a divisão entre a morte e a ressurreição. Para tornar isso
mais enfático, Cristo precedeu sua promessa com as solenes mas seguras palavras
“Em verdade te digo”. Foi essa perspectiva de ir para Cristo depois da morte
que animou o mártir Estevão em sua última hora e, em conseqüência, ele de fato
bradou, “Senhor Jesus, recebe o meu espírito” (At 7.59). Foi essa bendita
expectativa que levou o apóstolo Paulo a dizer, tenho o “desejo de partir, e
estar com Cristo, porque isto é ainda muito melhor” (Fp 1.23). Não em um estado
de ausência de consciência no túmulo, mas com Cristo no Paraíso é o que aguarda
todo crente após a morte. Digo, todo “crente”, pois as almas dos incrédulos, ao
invés de irem para lá, vão para o lugar de tormentos, como está claro no ensino
de nosso Senhor em Lucas 16. Leitor, para onde irá a sua alma, se estiver
morrendo nesse momento?
Quão arduamente Satanás luta para ocultar essa abençoada
esperança dos santos de Deus! Por um lado ele propaga o infeliz dogma do sono
da alma, o ensino de que os crentes ficam em um estado de inconsciência entre a
morte e a ressurreição; e, por outro, ele inventa um horrível purgatório, para
aterrorizá-los com o pensamento de que, ao morrerem, passam pelo fogo,
necessário para purificá-los e adequá-los para o céu. Quão inteiramente a
palavra de Cristo ao ladrão liquida essas ilusões que desonram a Deus! O ladrão
foi da cruz direto para o Paraíso! O momento em que um pecador crê, é o momento
em que ele é tornado idôneo “para participar da herança dos santos na luz” (Cl
1.12). “Porque com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que são
santificados” (Hb 10.14). Nossa aptidão para a presença de Cristo, tanto quanto
nosso título, repousa unicamente em seu sangue derramado.
7. Aqui vemos o anelo do Salvador por comunhão.
Na comunhão alcançamos o clímax da graça e a essência do
privilégio cristão. Mais alto que essa comunhão não podemos chegar. Deus nos
chamou “para a comunhão de seu Filho” (1Co 1.9). Freqüentemente se nos diz que
somos “salvos para servir”, e isso é verdade, mas é somente parte dessa, e de
modo nenhum a mais maravilhosa e abençoada. Somos salvos para a comunhão. Deus
tinha inumeráveis “servos” antes que Cristo viesse aqui para morrer — os anjos
sempre cumpriram suas ordens. Ele veio primeiramente, não para se assegurar de
servos, mas daqueles que deveriam entrar em comunhão com ele.
O que torna o céu superlativamente atraente ao coração do
santo não é o fato de ser um lugar onde seremos libertos de toda tristeza e
sofrimento, de ser onde encontraremos outra vez aqueles que amamos no Senhor,
nem por suas ruas de ouro, portas de pérolas e muros de jaspe — não, benditas
coisas são essas, mas o céu sem Cristo não seria céu. É Cristo que o coração do
crente anseia e almeja — “Quem tenho eu no céu senão a ti? e na terra não há
quem eu deseje além de ti” (Sl 73.25). E a mais surpreendente coisa é que o céu
não será céu para Cristo no sentido mais elevado até que seus remidos estejam
reunidos em torno dele. É por seus santos que seu coração deseja ardentemente.
Vir outra vez e “receber-nos para si mesmo” é a jubilosa expectativa posta
perante ele. Não até que veja o trabalho de sua alma e fique totalmente
satisfeito.[48]
Esses são os pensamentos sugeridos e confirmados pelas
palavras do Senhor Jesus ao ladrão agonizante. “Senhor, lembra-te de mim” fora
seu clamor. E qual foi a resposta? Repare cuidadosamente nela. Houvesse Cristo
simplesmente dito, “Em verdade te digo que hoje estarás no Paraíso”, isso teria
cessado os temores do ladrão. Sim, mas isso não satisfez ao Salvador. Aquilo
sobre o qual seu coração estava firmado era o fato de que naquele mesmo dia uma
alma salva por seu precioso sangue deveria estar com ele no Paraíso! Dizemos
outra vez, esse é o clímax da graça e a essência da bênção cristã. Disse o
apóstolo que tinha o “desejo de partir, e estar com Cristo” (Fp 1.23). E
novamente ele escreveu: “Ausentes deste corpo” — livres de toda dor e cuidado?
Não. “Ausentes do corpo” — trasladados à glória? Não. “Ausentes deste corpo...
presentes com o Senhor” (2Co 5.8, ARA). Assim também com Cristo. Disse ele: “Na
casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito; vou
preparar-vos lugar”; todavia, ao acrescentar “virei outra vez”, não diz “E
conduzir-vos-ei à casa do Pai”, ou “levar-vos-ei ao lugar que tenho preparado a
vós”, mas “virei outra vez, e vos tomarei para mim mesmo” (Jo 14.2,3). Estar
“para sempre com o Senhor” (1Ts 4.17) é a meta de todas as nossas esperanças;
ter-nos para sempre consigo é o que ele anseia com ardente e alegre
expectativa. Estarás comigo no Paraíso!
3. A PALAVRA DE
AFEIÇÃO
E junto à cruz de Jesus estava
sua mãe, e a irmã de sua mãe, Maria de Cleofas, e Maria Madalena. Ora Jesus,
vendo ali sua mãe, e que o discípulo a quem ele amava estava presente, disse a
sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho.
João 19. 25,26
“E JUNTO à cruz de Jesus estava sua mãe”
(Jo 19.25). Como seu Filho, Maria estava familiarizada com o sofrimento. Desde
o princípio somos informados: “E, entrando o anjo onde ela estava, disse:
Salve, agraciada; o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres. E,
vendo-o ela, turbou-se muito com aquelas palavras e considerava que saudação
seria esta” (Lc 1.28,29). Isso foi apenas o prenúncio de muitas perturbações:
Gabriel tinha vindo lhe anunciar o fato da concepção milagrosa, e um momento de
reflexão nos mostrará que não foi coisa fácil para Maria o se tornar a mãe do
nosso Senhor dessa forma misteriosa e sem precedentes. Sem dúvida, isso trouxe,
mais tarde, grande honra, mas também não pouco perigo no presente para a
reputação de Maria, e não pouca prova para a sua fé. É belo observar sua quieta
submissão à vontade divina: “Disse, então, Maria: Eis aqui a serva do Senhor;
cumpra-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1.38), foi a sua resposta. Isso foi
resignação amorosa. Todavia, ela ficou “perturbada” com a Anunciação e, como
dissemos, foi apenas o precursor das muitas provas e aflições.
Que aflição deve ter lhe causado quando,
por não haver nenhum quarto na pousada, ela teve que deitar o seu bebê
recém-nascido numa manjedoura! Que angústia deve ter sido a sua quando soube do
intento de Herodes de matar a vida do seu infante! Que transtorno lhe deu ser
forçada, por conta dele, a fugir para um país estrangeiro e residir por vários
anos na terra do Egito! Que golpes penetrantes na sua alma devem ter sido ao
ver seu Filho desprezado e rejeitado pelos homens! Que aperto no coração
causava a tristeza de contemplá-lo como odiado e perseguido pela sua própria nação!
E quem pode estimar o que ela experimentou enquanto permanecia ali ao pé da
cruz? Se Cristo foi o homem de dores, não foi ela a mulher de dores?
“E junto à cruz de
Jesus estava sua mãe” Jo 19.25
1. Aqui vemos o cumprimento da profecia de
Simeão.
De acordo com as exigências da lei de
Moisés, os pais do menino Jesus trouxeram-no ao templo para apresentá-lo ao
Senhor. Então, aconteceu que o velho Simeão, que esperava pela Consolação de
Israel, o tomou em seus braços e bendisse a Deus. Depois de dizer:
Agora, Senhor,
podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra, pois já os meus olhos
viram a tua salvação, a qual tu preparaste perante a face de todos os povos,
luz para alumiar as nações e para glória de teu povo Israel” (Lucas 2.29-32),
ele se voltou para Maria e disse:
“Eis que este é
posto para queda e elevação de muitos em Israel e para sinal que é contraditado
(e uma espada traspassará também a tua própria alma), para que se manifestem os
pensamentos de muitos corações” (Lucas 2.34, 35).
Que estranha palavra, essa! Poderia ser
que dela, o maior de todos os privilégios fosse trazer a maior de todas as
tristezas? Parecia a coisa mais improvável quando Simeão falou. Todavia, quão
verdadeira e tragicamente veio a acontecer! Aqui na cruz essa profecia de
Simeão foi cumprida.
“E junto à cruz de Jesus estava sua mãe”
(Jo 19.25). Após os dias de sua infância e adolescência, e durante todo o
ministério público de Cristo, vemos e ouvimos muito pouco de Maria. Sua vida
foi vivida na obscuridade, entre as sombras. Mas agora, quando a hora suprema
lhe golpeava com a agonia do seu Filho, quando o mundo rejeitava o filho do seu
ventre, ela permaneceu ali, junto à cruz! Quem pode retratar adequadamente tal
figura? Maria estava mais perto do madeiro cruel! Despojada de fé e esperança,
frustrada e paralisada pela estranha cena, todavia, ligada com a corrente
dourada de amor àquele que estava agonizando, ali ela permanece! Experimente e
leia os pensamentos e as emoções do coração daquela mãe. Ó, que espada foi
aquela que perfurou a sua alma então! Felicidade tal como nunca em um
nascimento humano, tristeza tal como nunca em uma morte desumana.
Aqui vemos demonstrado o coração de mãe.
Ela é a mãe daquele homem moribundo.
Aquele que agonizava ali sobre a cruz era
o seu filho. Ela foi a primeira a beijar aquela testa agora coroada de
espinhos. Ela foi a primeira a guiar aquelas mãos e pés nos seus movimentos
quando bebê.
Nenhuma mãe jamais sofreu como ela. Seus
discípulos podem desertá-lo, seus amigos podem esquecê-lo, sua nação pode
desprezá-lo, mas sua mãe permanece ali ao pé da sua cruz. Oh, quem pode sondar
ou analisar o coração da Mãe?
Quem pode mensurar aquelas horas de
tristeza e sofrimento à medida que a espada atravessava lentamente a alma de
Maria? Não houve nenhum pranto histérico ou efusivo. Não houve nenhuma
demonstração de fraqueza feminina; nenhum clamor violento vindo de uma angústia
incontrolável; nenhum desmaio. Palavra alguma de seus lábios ficou registrada
por nenhum dos quatro evangelistas: ela aparentemente sofreu em vigoroso
silêncio. Todavia, sua tristeza não foi menos real e aguda. Águas silenciosas
penetram fundo. Ela viu aquela testa perfurada com espinhos cruéis, mas não
pôde alisá-la com seu terno toque. Ela viu suas mãos perfuradas e seus pés
ficarem dormentes e pálidos, mas ela não podia esfregá-los. Ela notou sua
necessidade de água, mas não lhe foi permitido saciar sua sede. Ela sofreu em
profunda desolação de espírito.
“E junto à cruz de Jesus estava sua mãe”
(Jo 19.25). A multidão estava zombando; os ladrões, insultando; os sacerdotes,
escarnecendo; os soldados, endurecidos e indiferentes; o Salvador, sangrando e
morrendo - e ali está sua mãe contemplando a horrível zombaria. Quem ficaria
maravilhado se ela desmaiasse diante de uma tal visão! Quem ficaria maravilhado
se ela se afastasse de um tal espetáculo! Quem ficaria maravilhado se ela
fugisse de uma tal cena!
Mas não! Ali estava ela: não se encolhe,
não desmaia, e nem mesmo desaba ao chão em sua dor - ela permaneceu de pé. Sua
ação e atitude são singulares. Em todos os anais da história da nossa raça não
há nenhum paralelo. Que coragem transcendente! Ela permaneceu junto à cruz de
Jesus - que vigor maravilhoso! Ela reprimiu sua dor, e permaneceu ali quieta.
Não foi a reverência pelo Senhor que a guardou de perturbá-lo em seus últimos
momentos?
“Ora, Jesus, vendo ali sua mãe e que o
discípulo a quem ele amava estava presente, disse à sua mãe: Mulher, eis aí o
teu filho. Depois, disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. E desde aquela hora o
discípulo a recebeu em sua casa” Jo 19.26, 27
2. Aqui vemos o homem perfeito colocando
um exemplo para os filhos honrarem os seus pais.
O Senhor Jesus evidenciou sua perfeição na
maneira com que cumpriu plenamente as obrigações de toda relação que ele
manteve, quer para com Deus, quer para com os homens. Na cruz nós contemplamos
seu terno cuidado e solicitude para com sua mãe, e nisto temos o padrão de
Jesus Cristo apresentado a todos os filhos para que eles o imitem,
ensinando-lhes como se portarem para com os seus pais de acordo com as leis da
natureza e da graça.
As palavras que o dedo divino gravou nas
duas tábuas de pedra, e que foram dadas a Moisés no Monte Sinai, nunca foram
anuladas. Elas ainda estão em vigor enquanto a terra perdurar. Cada uma delas
está incorporada no ensino didático do Novo Testamento. As palavras de Êxodo
20.2 são reiteradas em Efésios 6.1-3: “Vós, filhos, sede obedientes a vossos
pais no Senhor, porque isto é justo. Honra a teu pai e a tua mãe, que é o
primeiro mandamento com promessa, para que te vá bem, e vivas muito tempo sobre
a terra”.
O mandamento para os filhos honrarem os
seus pais vai muito além de uma mera obediência a essa vontade expressa,
embora, certamente, inclua essa. Ele envolve amor e afeição, gratidão e respeito.
Com freqüência se pensa que esse quinto mandamento é dirigido aos jovens
somente. Nada pode estar mais longe da verdade. Inquestionavelmente ele se
dirige a eles em primeiro lugar, pois na ordem da natureza os filhos são sempre
primeiramente jovens. Mas concluir que tal mandamento perca força quando a
infância é deixada para trás é não entender pelo menos metade do seu
significado profundo. Como sugerido, a palavra “honra” vai além de obediência,
embora essa seja seu sentido principal. No curso do tempo os filhos crescem até
alcançar a virilidade, que é a idade de plena responsabilidade pessoal, a idade
quando eles não mais estão debaixo do controle dos seus pais, todavia, as suas
obrigações não cessaram. Eles devem aos seus pais um débito que eles nunca
podem se desobrigar plenamente. O mínimo dos mínimos que podem fazer é manter
os seus pais em alta estima, colocá-los no lugar de superioridade e
reverenciá-los. No Exemplo perfeito encontramos tanto obediência como estima
manifestadas.
O fato de que o último Adão não veio a
este mundo como o primeiro Adão - em plena posse das glórias distintivas da
humanidade: totalmente desenvolvido em corpo e mente - mas como um bebê, tendo
que passar por todo o período da infância, é um fato de tremenda importância e
valor pela luz que ele lança sobre o quinto mandamento. Durante seus primeiros
anos, o menino Jesus estava sob o controle de Maria, sua mãe, e de José, seu
pai legal. Isso é belamente demonstrado no segundo capítulo de Lucas.
Quando chegou aos doze anos, Jesus foi
levado por eles até Jerusalém para a festa da Páscoa. O retrato apresentado é
profundamente sugestivo se a devida atenção lhe for dada. No final da festa,
José e Maria partem para Nazaré, acompanhados pelos seus amigos e supondo que
Jesus estivesse com eles. Mas, pelo contrário, ele tinha permanecido na cidade
real. Após um dia de jornada sua ausência foi descoberta. Imediatamente eles
voltaram para Jerusalém, e ali o encontraram no templo. Sua mãe o interroga
assim: “Quando os pais viram o menino, também ficaram admirados. E a sua mãe
lhe disse: —Meu filho, por que foi que você fez isso conosco? O seu pai e eu
estávamos muito aflitos procurando você” (Lc 2.48, ARA). O fato de que ela o
buscara “aflita” implica fortemente que ele quase nunca havia estado fora da
esfera imediata da influência dela. Não encontrá-lo por perto foi para ela uma
nova e estranha experiência, e o fato de que ela, assistida por José, o buscou
“aflita” revela a bela relação existente entre eles no lar em Nazaré! A resposta
que Jesus deu à sua pergunta, quando corretamente entendida, também revela a
honra que tinha por sua mãe. Estamos bem de acordo com o Dr. Campbell Morgan de
que Cristo não a repreendeu aqui. Em grande medida, trata-se de uma questão de
achar a ênfase correta: “Não sabeis?”. Como o expositor anteriormente
mencionado bem o diz: “É como se ele tivesse dito: ‘Mãe, certamente você me
conhece bem o suficiente para saber que nada pode me deter, senão os negócios
do Pai”. A seqüência é igualmente bela, pois lemos “E desceu com eles, e foi
para Nazaré, e era-lhes sujeito” (Lc 2.51). E assim, por todo o tempo o Cristo
de Deus deu o exemplo para os filhos obedecerem aos seus pais.
Mas há mais. Aconteceu com Cristo o mesmo
que nos sucede: os anos de obediência à Maria e José terminaram, mas não os
anos de “honra”. Nas últimas e terríveis horas de sua vida humana, no meio dos
sofrimentos infinitos da cruz, o Senhor Jesus pensou naquela que o amava e a
quem ele amava; ele pensou na sua necessidade presente e proveu para a sua
necessidade futura encomendando-a aos cuidados daquele discípulo que mais
profundamente entendeu o seu amor. Seu pensamento em Maria naquela hora e a
honra que ele lhe deu foi uma das manifestações de sua vitória sobre a dor.
Talvez se requeira uma palavra com relação
à forma com que nosso Senhor se dirige à sua mãe - “Mulher”. Até onde os
registros dos quatro evangelhos vão, nunca ele a chamou de sua “Mãe”. Para nós
que vivemos hoje, a razão para isso não é difícil de ser discernida. Olhando
para os séculos vindouros com previsão onisciente, e vendo o horrível sistema
de Mariolatria tão logo sendo erigido, ele se refreou de usar uma palavra que
de alguma forma sustentasse essa idolatria - a idolatria de prestar à Maria a veneração
que só a seu Filho é devida; a idolatria de adorá-la como sendo “A Mãe de
Deus”.
Deus”.
Por duas vezes nos registros dos
evangelhos, encontramos sim nosso Senhor se dirigindo a Maria como “Mulher”, e
é mais digno de nota que ambas se encontram no de João, o qual, como bem
sabido, apresenta a deidade de nosso Salvador. Os sinóticos o expõe em suas
relações humanas; tal não se dá com o quarto evangelho. O de João apresenta
Cristo como o Filho de Deus, e como tal, acima de todas as relações humanas, e
daí a perfeita consonância de mostrar o Senhor Jesus aqui se dirigindo a Maria
como “Mulher”.
O ato de nosso Senhor na cruz,
encomendando-a aos cuidados de seu amado apóstolo, é mais bem entendido à luz
da viuvez de sua mãe. Ainda que os evangelhos não registrem especificamente a
sua morte, há poucas dúvidas de que José morrera antes do tempo em que o Senhor
Jesus começou seu ministério público. Nada é informado sobre o marido dela após
o incidente relatado em Lucas 2, quando Jesus era um menino de doze anos. Em
João 2 Maria é vista nas bodas de Caná, mas não se fala nada sobre se José
estava presente. Foi em vista da viuvez de Maria, portanto, e também do fato de
que o tempo agora chegara, quando não mais seria um conforto para ela com sua
presença corporal, que seu amoroso cuidado é manifestado.
Permita-me apenas uma breve palavra de
exortação. Provavelmente tais linhas poderão ser lidas por várias pessoas
adultas que ainda têm pais e mães vivos. Como você está tratando deles? Está
verdadeiramente “honrando-os”? Esse exemplo de Cristo na cruz não o deixa
envergonhado? Pode ser que você seja jovem e vigoroso, e seus pais, de cabelos
grisalhos e doentes; mas diz o Espírito Santo: “não desprezes a tua mãe, quando
vier a envelhecer” (Pv 23.22). Pode ser que você seja rico, e eles, pobres;
então não deixe de prover por eles. Pode ser que eles vivam em um estado ou uma
terra distante, então não seja negligente, deixando de escrever-lhes palavras
de apreço e alegria que darão brilho ao término de seus dias. São obrigações
sagradas: “Honra a teu pai e a tua mãe”.
3. Aqui vemos que João retornara ao lado
do Salvador.
Com exceção, naturalmente, do sofrimento
de Cristo na mão de Deus, talvez a escória mais amarga de todas no copo em que
ele bebeu fosse o seu abandono por parte dos apóstolos. Foi ruim o bastante e
triste o bastante o fato de seu próprio povo, os judeus, desprezarem e
rejeitarem-no; porém, de longe pior foi os Onze, que o haviam acompanhado por
tanto tempo, desertarem de seu Senhor na hora da crise. Alguém pensaria que sua
fé e seu amor fossem iguais mesmo nos sobressaltos. Mas não foram. “Todos...
deixando-o, fugiram” (Mt 26.56), é o que traz a narrativa sacra. Indizivelmente
trágico isso. Seu fracasso em “vigiar” com ele por uma hora no Jardim bem que
quase paralisa nossas mentes, mas o afastar-se dele na hora de sua prisão quase
desconcerta a nossa compreensão. Quase, dizemo-lo, pois se não tivermos
aprendido por amarga experiência o engano que há em nossos corações, quão débil
é a nossa fé, quão lamentavelmente fracos nós somos na hora da provação e do
teste! Mas, pela graça divina, a menor das ninharias é suficiente para nos
vencer. Tirado o poder retentor e sustentador de Deus, por quanto tempo nós
agüentaríamos?
O Senhor Jesus havia solenemente avisado
esses discípulos de sua covardia próxima: “Então Jesus lhes disse: Todos vós
esta noite vos escandalizareis em mim; porque está escrito: Ferirei o pastor, e
as ovelhas do rebanho se dispersarão” (Mt 26.31). E não apenas Pedro, mas todos
os apóstolos afirmaram sua determinação de ficar ao lado dele:
“Disse-lhe Pedro: Ainda que me seja mister
morrer contigo, não te negarei. E todos os discípulos disseram o mesmo” (Mt
26.35). Entretanto, sua palavra se provou verdadeira, e eles todos desertaram
dele de modo desprezível. E como isso refletia sobre sua glória! Pela fuga
pecaminosa, eles expuseram o Senhor Jesus ao desprezo e troças dos seus
inimigos. É por causa disso que lemos: “O sumo-sacerdote interrogou Jesus
acerca dos seus discípulos” (Jo 18.19). Nem é preciso complementar a frase. Sem
dúvida, Caifás o inquiriu sobre quantos discípulos ele tivera, e o que era
feito deles agora? E qual foi a razão por que abandonaram seu Mestre, e o
deixaram se arranjar sozinho quando surgiu o perigo? Mas observe que, para essa
questão, o Salvador não deu resposta alguma. Ele não os acusaria ao inimigo
comum ainda que eles tivessem desertado dele.
Eles o abandonaram porque ficaram
“ofendidos” por causa dele: “Todos vós ficareis ofendidos por causa de mim esta
noite” (Mt 26.31, KJV): a palavra grega aqui traduzida por “ofendido” pode bem
ser vertida “escandalizado” [49].
Ficaram com vergonha de serem achados em sua companhia. Eles julgaram não ser
mais seguro permanecer com ele. Como ele se entregou, consideraram aconselhável
se prevenir o quanto pudessem, e em algum lugar ou outro se refugiarem da
presente tempestade que se abatera sobre ele. Isso forma o lado humano.
Da parte divina, o abandono de Cristo por
eles era devido à suspensão da graça preservadora e sustentadora de Deus. Eles
não estavam acostumados a abandoná-lo. Nunca o fariam mais tarde. Jamais teriam
agido assim nesse momento se tivesse havido influências de poder, zelo e amor
vindas do céu sobre eles. Mas então como poderia Cristo ter carregado o fardo e
a cólera daquele dia? Como deveria ele ter pisado o lagar sozinho? Como
deveriam suas dores ter ficado sem lenitivo se eles houvessem aderido fielmente
a ele? Não, não, não o deve ser. Cristo não deve ter o menor alívio ou conforto
de qualquer criatura e, por essa razão, para que ele pudesse ser deixado
sozinho com a ira de Deus e do homem, o Senhor por um tempo retém suas
influências revigorantes deles; e então, como Sansão, quando teve cortado os
cachos de sua cabeleira, ficaram tão fracos como os outros homens.
“Fortalecei-vos no Senhor e na força do seu poder”, diz o apóstolo [50]
— se tal é retido, nossos desígnios e resoluções se derretem diante da tentação
como a neve diante do sol.
Todavia, observe que a covardia e a
infidelidade dos apóstolos foi apenas temporária. Mais tarde, eles o buscaram
no lugar assinalado na Galiléia (Mt 28.16). Mas não é motivo de regozijo saber
que um dos onze procurou sim a ele antes de sua ressurreição triunfante do
túmulo? Sim, foi procurado enquanto ainda pendia na cruz de vergonha! E quem se
poderia supor que fosse? Qual do pequeno grupo dos apóstolos deve demonstrar a
superioridade de seu amor? Mesmo se a narrativa sagrada houvesse ocultado sua
identidade, não teria sido algo difícil fornecer seu nome. O fato ora
considerado na escritura mostra-nos João ao pé da cruz, e é uma testemunha
silenciosa porém suficiente da divina inspiração da Bíblia. É uma daquelas
harmonias não intencionadas da palavra que atesta a origem sobre-humana das
escrituras. Não há indicação alguma que qualquer outro dos onze estivesse ao
redor da cruz, mas o leitor atento esperaria achar ali “o discípulo a quem
Jesus amava” [51]. E lá estava ele. João retornara ao lado
do Salvador, e ali recebe dele uma bendita comissão. Quão natural e quão
perfeita é a silenciosa harmonia da escritura!
E agora, mais uma vez, uma breve palavra
de exortação. Há alguém que lê estas linhas que esteja se apartando do lado do
Salvador, que não mais esteja desfrutando da doce comunhão com ele; que, em uma
palavra, esteja desviado? Talvez na hora da prova você o tenha negado. Talvez
na hora do teste você falhou. Você pensa mais nos seus próprios interesses que
nos dele. A honra do nome dele, que você porta, foi perdida de vista. Ó, que a
flecha da convicção agora entre em sua consciência. Possa a divina graça
enternecer o seu coração. Possa o poder de Deus trazê-lo de volta a Cristo,
onde somente sua alma pode encontrar satisfação e paz. Aqui há encorajamento
para você. Cristo não repreendeu João por retornar; antes, sua maravilhosa
graça concedeu-lhe um inefável privilégio. Cesse então de suas perambulações e
volte imediatamente a Cristo, e ele o saudará com uma palavra de boas-vindas e
de alegria; e quem sabe se ele não tem uma honrosa comissão aguardando por
você!
4. Aqui descobrimos uma ilustração da
prudência de Cristo.
Já vimos como o ato de Cristo em
encomendar Maria às mãos de seu discípulo foi uma expressão de seu terno amor e
de sua presciência. Pois João se encarregar da mãe viúva do Salvador foi uma
abençoada comissão e, contudo, um legado precioso. Quando Cristo lhe disse,
“Eis aí tua mãe” [52], foi como se tivesse dito, Seja ela para
ti como tua própria mãe: Seja teu amor por mim agora manifestado em teu terno
cuidado por ela. Porém, havia muito mais do que isso por trás desse ato de
Cristo.
Outrora já fora predito que o Senhor Jesus
deveria agir sábia e discretamente. Por meio de Isaías, Deus dissera: “Eis que
o meu servo operará com prudência” (52.13). Ao encomendar sua mãe aos cuidados
de seu amado apóstolo, o Salvador mostrou sábia discriminação em sua escolha
daquele que a partir de então seria o guardião dela.
Talvez não houvesse ninguém que
compreendesse o Senhor Jesus tão bem quanto sua mãe, e é quase certo que
ninguém apreendera seu amor tão profundamente quanto João.
Vemos portanto como seriam eles companhias
apropriadas um para o outro, visto que havia um laço íntimo de simpatia comum
que os unia juntamente e os ligava a Cristo!
Desse modo, não havia ninguém tão adequado
para cuidar de Maria, ninguém cuja companhia ele acharia tão afim e, por outro
lado, não existia ninguém cuja companhia João pudesse desfrutar mais.
Além disso, deve-se ter na mente que uma
obra maravilhosa e honrosa estava esperando por João. Anos mais tarde, o Senhor
Jesus foi revelar a si próprio ao apóstolo no glorioso apocalipse. Como, então,
ele melhor poderia se habilitar para tal senão estando constantemente com ela,
que vivera em estreita intimidade e comunicação com o Salvador durante os
trinta anos que ele tinha esperado para dar início ao seu trabalho! Podemos,
portanto, ver como era de significativa propriedade que esses dois — Maria e João
— fossem trazidos para junto um do outro. Admire então a prudência da eleição
por Cristo de um lar para Maria, e ao mesmo tempo provendo uma companhia para o
discípulo a quem ele amava, que poderia ter uma bendita companhia espiritual.
Antes de passarmos para o nosso próximo
ponto, podemos fazer uma observação de que esse recolhimento de Maria à casa de
João traz luz a um incidente registrado no próximo capítulo do evangelho
escrito por ele. Em João 20 se nos informa da visita de Pedro e João ao
sepulcro vazio. João ultrapassou seu companheiro e chegou primeiro ao túmulo,
mas não entrou. Pedro, como era de sua característica, adentra o sepulcro, e
nota a ordenada disposição das roupas. Então entra João e vê e “crê”, pois até
esse tempo a fé deles não tinha apanhado o sentido das promessas da
ressurreição de Cristo. Conseqüente com a crença de João, lemos: “E os
discípulos voltaram assim para os seus lares” (Jo 20.10, Tradução do Novo
Mundo). Não nos é dito o porquê deles assim agirem, mas, à vista de João 19.27,
a explicação fica óbvia. Ali se nos conta que “desde aquela hora o discípulo a
recebeu em sua casa”, e agora que fica sabendo que o Salvador ressurgira dentre
os mortos, e se apressa para “casa” para dizer a ela as boas novas! Quem mais
do que ela regozijar-se-ia ante essas notícias alvissareiras! Esse é um outro
exemplo da harmonia silenciosa e escondida da escritura.
5. Aqui vemos que as relações espirituais
não devem ignorar as responsabilidades naturais.
O Senhor Jesus estava morrendo como o
Salvador para os pecadores. Ele estava comprometido com a mais importante e
estupenda incumbência que esta terra jamais testemunhou ou testemunhará. Ele
estava a ponto de oferecer satisfação à justiça divina ultrajada. Ele estava
para fazer aquela obra pela qual o mundo fora feito, pela qual a raça humana
fora criada, pela qual todas as eras aguardaram, e pela qual ele, o Verbo eterno,
se encarnara. Entretanto, ele não passou por cima das responsabilidades dos
laços naturais; ele não deixou de fazer provisão àquela que, de acordo com a
carne, era sua mãe.
Há aqui uma lição a qual muitos precisam
levar a sério nos dias correntes. Nenhuma obrigação, nenhuma obra, por
importante que seja, pode nos servir de escusa para deixarmos as obrigações de
natureza, de cuidar daqueles por quem temos deveres de sangue. Aqueles que
partem como missionários para labutar em terras pagãs, e que deixam para trás
seus filhos, ou que os enviam de volta à terra natal para serem cuidados por
estranhos, não estão seguindo os passos do Salvador. Aquelas mulheres que
passam a maior parte de seu tempo em reuniões públicas, ainda que sejam de
cunho religioso, ou que descem às favelas para ministrar aos pobres e
necessitados, negligenciando sua própria família em casa, só estão trazendo
vitupério ao nome e à causa de Cristo. Tais homens, mesmo que estejam à frente
da obra de Cristo, que estão tão ocupados pregando e ensinando que não têm
tempo algum para cumprir as obrigações por ele devidas às suas próprias esposas
e filhos, precisam estudar e praticar o princípio exemplificado aqui por Cristo
na cruz.
Aqui vemos uma necessidade universal
exemplificada.
Quão diferente é a Maria da escritura da
Maria da superstição! Ela não era nenhuma Madona altiva, mas um membro da raça
caída como cada um de nós, uma pecadora tanto por natureza quanto por prática.
Antes do nascimento de Cristo ela declarou: “A minha alma engrandece ao Senhor,
e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador” (Lc 1.46,47). E agora, na
morte do Senhor Jesus ela é encontrada perante a cruz. A palavra de Deus não
apresenta a mãe de Jesus como a rainha dos anjos adornada com diadema, mas como
alguém que se deleitava em um Salvador. É verdade que ela é “bendita entre (não
‘acima de’) as mulheres”, e isso em virtude da elevada honra de ser a mãe do
Redentor; todavia, ela era humana, um membro real de nossa raça caída, uma
pecadora que precisava de um Salvador.
Ela permaneceu junto à cruz. E quando ali
estava, o Salvador exclamou, “Mulher, eis aí o teu filho!” [53]
(Jo 19.26). Ali,
resumida numa simples palavra, é expressa a necessidade de todo descendente de Adão
— voltar os olhos do mundo, para fora do eu, e olhar por fé para o Salvador que
morreu pelos pecadores. Ali está o divino epítome do Caminho da Salvação.
Libertação da ira vindoura, perdão dos pecados, aceitação por parte de Deus,
tudo isso é obtido, não por feito meritório, não por boas obras, não por
ordenanças religiosas; não, a salvação vem por contemplar — “Eis o cordeiro de
Deus, que tira o pecado do mundo” [54].
Assim como os israelitas mordidos pelas serpentes no deserto foram curados por
um olhar, por um olhar para o que Jeová designou que fosse o objeto da fé
deles, também hoje a redenção da culpa e do poder do pecado, a libertação da
maldição da lei quebrada e do cativeiro de Satanás, deve ser encontrada somente
pela fé em Cristo. “E, como Moisés levantou a serpente no deserto, assim
importa que o Filho do homem seja levantado; para que todo aquele que nele crê
não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3.14,15). Há vida em um olhar.
Leitor, você já contemplou desse modo aquele divino Sofredor? Você o viu
morrendo na cruz, o justo pelo injusto, para que pudesse nos trazer para Deus?
Maria, mãe de Cristo, precisava “contemplá-lo”, e assim é com você. Olhe então,
olhe para Cristo e serás salvo.
7. Aqui vemos a maravilhosa combinação das
perfeições de Cristo.
Essa é uma das maiores maravilhas de sua
pessoa — a combinação da mais perfeita afeição humana com sua glória divina. O
próprio evangelho que o mostra sobretudo como Deus é aqui cuidadoso par provar
que ele era homem — o Verbo que se fez carne. Comprometido que estava na divina
transação, fazendo expiação por todos os pecados de seu povo, lutando contra os
poderes das trevas, todavia, em meio a isso tudo, ele ainda tinha a mesma
ternura humana, que mostra a perfeição do homem Jesus Cristo.
Esse cuidado por sua mãe na hora da morte
era característico de toda a sua conduta. Tudo era natural e perfeito. A
simplicidade não estudada dele é mais notada. Não havia nada pomposo ou
faustoso. Muitas das suas mais poderosas obras foram feitas no caminho, na
cabana ou entre um pequeno grupo de sofredores. Muitas de suas palavras, que
ainda hoje são insondáveis e inexauríveis em sua riqueza de significação, foram
proferidas quase que casualmente enquanto caminhava com alguns amigos.
Assim o foi na cruz. Ele estava executando
aquela mais poderosa obra de toda a história. Ele estava comprometido em
realizar aquela que faz com que, em comparação, a criação do mundo se esmaeça
em total insignificância, porém, não esquece de fazer provisão para sua mãe —
provisão essa que ele pôde fazer bastante quando estiveram juntos na casa em Nazaré.
Corretamente foi dito outrora: “Seu nome será Maravilhoso” (Is 9.6).
Maravilhoso o foi em tudo que fez.
Maravilhoso o foi em todo relacionamento que ele manteve.
Maravilhoso o foi em sua pessoa, e
maravilhoso o foi em sua obra.
Maravilhoso o foi em vida, e maravilhoso o
era na morte. Que nos maravilhemos e adoremos.
4 A PALAVRA DE ANGÚSTIA
“E perto da hora nona exclamou
Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lama sabactani; isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Mateus 27.46
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
ESSAS SÃO PALAVRAS DE CHOCANTE
IMPORTÂNCIA. A crucificação do Senhor da glória foi o mais extraordinário
evento que já aconteceu na terra, e esse brado do padecente foi a mais
extraordinária expressão daquela aterradora cena. Que um inocente fosse
condenado, que o sem culpa fosse perseguido, que um benfeitor fosse cruelmente
sentenciado à morte, não era nenhum acontecimento novo na história. Do
assassínio do justo Abel àquele de Zacarias houve uma longa lista de martírios.
Mas aquele que pendurado estava na cruz do centro não era nenhum homem comum,
era o Filho do Homem, aquele no qual todas as excelências se encontravam — o
Perfeito. Seu caráter era como sua túnica, “tecida toda de alto a baixo, [e]
não tinha costura”.[55]
No caso dos outros maltratados havia
deméritos e manchas que poderiam proporcionar aos seus assassinos algo com que
culpá-los. Mas desse o juiz falou: “Não acho nele crime algum”.[56]
E mais. Esse Sofredor não era apenas um
homem perfeito, mas o Filho de Deus. Todavia, não era estranho que o homem
quisesse destruir Deus. “Disse o néscio no seu coração: Não há Deus” (Sl 14.1),
tal é o seu desejo. Mas é estranho que aquele que era Deus manifestado na carne
devesse permitir a si mesmo ser assim tratado por seus inimigos. É extremamente
estranho que o Pai que se deleitava nele, cuja própria voz declarara dos céus
abertos, “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo”, devesse entregá-lo a
uma morte tão vexaminosa.
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
Essas são palavras de estarrecedora
miséria. A própria palavra “desamparaste” é uma das mais trágicas em todas as
línguas humanas. O escritor jamais se esquecerá da sensação que teve ao passar
uma vez por uma cidade deserta, sem habitante algum — uma cidade desamparada.
Que calamidades são conjuradas por tal palavra — um homem desamparado de seus
amigos, uma esposa desamparada de seu marido, uma criança desamparada por seus
pais! Mas uma criatura desamparada por seu Criador, um homem desamparado de
Deus — Ó, isso é o mais horrendo de tudo. Esse é o mal dos males. Isso é a
calamidade climatérica. Verdade, os homens caídos, em sua condição não
renovada, não o acham. Mas aquele que, pelo menos em certa medida, aprendeu que
Deus é a essência de toda perfeição, a fonte e a meta de toda excelência, cujo
clamor é “Como o cervo brama pelas correntes das águas, assim suspira a minha
alma por ti, ó Deus!” (Sl 42.1), prontamente endossará o que acaba de ser dito.
O clamor dos santos em todas as eras tem
sido, “Não nos desampare, ó Deus”.[57]
Pois o Senhor esconder sua face de nós por um momento que seja é insuportável.
Se isso é verdade quanto aos pecadores regenerados, quão infinitamente mais o é
quanto ao Filho amado do Pai!
Aquele que estava pendurado no madeiro
maldito tinha sido desde toda eternidade o
objeto do amor do Pai. Empregando a linguagem de Provérbios 8, o Salvador padecente
era aquele que “estava com ele e era seu aluno”, que estava “cada dia as suas delícias”.
objeto do amor do Pai. Empregando a linguagem de Provérbios 8, o Salvador padecente
era aquele que “estava com ele e era seu aluno”, que estava “cada dia as suas delícias”.
Seu próprio gozo fora contemplar a face do
Pai. A presença do Pai fora seu lar, o seio do Pai o lugar de sua habitação, a
glória do Pai ele compartilhara antes que houvesse o mundo. Durante os trinta e
três anos que o Filho estivera na terra ele desfrutara de comunhão ininterrupta
com o Pai. Nunca um pensamento que estivesse fora da harmonia com a mente do
Pai, nunca uma volição que não fosse originária da vontade do Pai, nunca um
momento que fosse passado fora de sua presença consciente. O que então deve ter
significado estar por ora “desamparado” por Deus! Ah, o ocultamento da face
divina dele foi o mais amargo ingrediente daquele copo que o Pai tinha dado ao Redentor
para beber:
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
Essas são palavras de inigualável
sentimento. Elas marcam o clímax de seus sofrimentos. Os soldados haviam
cruelmente zombado dele: enfeitaram-no com a coroa de espinhos, tinham-no
açoitado e esbofeteado, tinham até chegado a ponto de cuspir nele e arrancar
seus cabelos. Despojaram-no de seus vestidos e o expuseram a uma vergonha
explícita. Todavia, sofreu tudo isso em silêncio. Perfuraram suas mãos e seus
pés, porém suportou a cruz, a despeito da ignomínia. A multidão vulgar
escarnecia dele, e os ladrões com ele crucificados lhe lançavam em rosto os
mesmos insultos; todavia, não abriu sua boca. Em resposta a tudo que sofria das
mãos dos homens, nenhum clamor escapou de seus lábios. Mas agora, quando a ira
concentrada do céu desce sobre si, ele exclama: “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” Seguramente, esse era um clamor que deveria enternecer o mais
duro coração!
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
Essas são palavras do mais profundo
mistério. Outrora o Senhor Jeová não abandonava seu povo.
Repetidamente ele foi seu refúgio na
tribulação. Quando Israel esteve em cruel servidão clamou a Deus, e ele o
ouviu. Quando ficou impotente diante do Mar Vermelho, ele veio em seu auxílio e
o livrou de seus inimigos. Quando os três hebreus foram lançados dentro da
fornalha de fogo, o Senhor esteve com eles. Mas daqui, da cruz, sobe um clamor
mais dorido e agonizante do que jamais subira da terra do Egito, entretanto,
não ouve resposta alguma! Eis aí uma situação de longe mais alarmante do
que a crise do Mar Vermelho: inimigos mais implacáveis cercaram esse, e no entanto não houve livramento algum! Eis aí um fogo que ardia infinitamente mais do que o da fornalha de Nabucodonosor, mas sem ninguém ao seu lado para confortar! Ele é abandonado por Deus!
que a crise do Mar Vermelho: inimigos mais implacáveis cercaram esse, e no entanto não houve livramento algum! Eis aí um fogo que ardia infinitamente mais do que o da fornalha de Nabucodonosor, mas sem ninguém ao seu lado para confortar! Ele é abandonado por Deus!
Não obstante, esse clamor do Salvador
padecente é profundamente misterioso. De início clamou, “Pai, perdoa-lhes,
porque não sabem o que fazem”, e isso podemos compreender, pois está em boa
conformidade com seu coração compassivo. Outra vez abrira ele sua boca, para
dizer ao ladrão penitente, “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no
Paraíso”, e isso também podemos entender bem, pois está totalmente de acordo
com sua graça para com os pecadores. Uma vez mais seus lábios se moveram — para
sua mãe, “Mulher, eis aí o teu filho”; para o amado João, “Eis aí tua mãe” — e
isso também podemos apreciar. Porém, na próxima vez em que ele abre sua boca,
um brado nos faz ficar sobressaltados e desconcertados. Outrora disse Davi,
“Nunca vi desamparado o justo”,[58] mas aqui vemos o Justo desamparado.
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
Essas são palavras da mais profunda
solenidade. Esse foi um clamor que fez a própria terra estremecer, e que
reverberou por todo o universo. Ah, que mente é suficiente para contemplar essa
maravilha das maravilhas! Que mente é capaz de analisar o sentido desse
estupendo clamor que rasgou as trevas medonhas! “Por que me desamparaste?” são
palavras que nos conduzem para dentro do Santo dos Santos. Aqui, se é que não o
é assim também em todo lugar, é supremamente conveniente que removamos os
sapatos da curiosidade carnal. As especulações são profanas; podemos apenas nos
maravilhar e adorar.
Mas, embora tais palavras sejam de
importância chocante, de assustadora miséria, do mais profundo mistério, de
singular sentimento, e de profunda solenidade, entretanto, não somos deixados
em ignorância quanto ao significado. Verdade, tal clamor foi profundamente
misterioso, todavia, é capaz da mais abençoada solução. As Escrituras Sagradas
não deixam margem para dúvidas de que tais palavras de inigualável tristeza
foram tanto a mais completa manifestação do amor divino e da mostra mais
inspiradora de terror da inflexível justiça divina. Possa todo pensamento ser
agora trazido cativo a Cristo e nossos corações ficarem devidamente graves
enquanto analisamos mais de perto esse quarto pronunciamento do Salvador
agonizante.
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
1. Aqui vemos a enormidade do pecado e o
caráter de seu salário.
O Senhor Jesus foi crucificado ao
meio-dia, e na luz do Calvário tudo foi revelado em seu verdadeiro caráter.
Ali, a própria natureza das coisas foi plena e finalmente exibida. A depravação
do coração humano — seu ódio por Deus, sua ingratidão abjeta, seu amor às
trevas no lugar da luz, sua preferência por um assassino no lugar do Príncipe
da vida — foi horrivelmente mostrada. O terrível caráter do diabo — sua
hostilidade contra Deus, sua insaciável inimizade contra Cristo, seu poder de
pôr no coração do homem a traição ao Salvador — foi plenamente exposta. Assim,
também, as perfeições da natureza divina — a inefável santidade de Deus, sua
justiça inflexível, sua ira terrível, sua graça sem par — foi de todo
conhecida. E ali também foi que o pecado — sua vileza, sua torpeza, sua não
sujeição a leis — foi claramente exibido. Aqui nós vemos a horrenda extensão a
que o pecado chegará. Em sua primeira manifestação ele tomou a forma de
suicídio, pois Adão destruiu sua própria vida espiritual; em seguida o vemos em
forma de fratricídio — Caim matando seu próprio irmão; mas na cruz o clímax é
atingido, com o deicídio — o homem crucificando o Filho de Deus.
Porém, não apenas vemos a hediondez do
pecado na cruz, mas ali também descobrimos o caráter de seu horrível pecado. “O
salário do pecado é a morte” (Rm 6.23). A morte é a herança do pecado. “Por um
homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte
passou a todos os homens por isso que todos pecaram” (Rm 5.12). Não houvesse
pecado nenhum, não haveria morte alguma. Mas o que é “morte”? É aquele pavoroso
silêncio que reina supremo após se dar o último fôlego e o corpo ficar sem movimentos?
É aquela cadavérica palidez que vem sobre a face quando o sangue cessa de
circular e os olhos ficam sem expressão? Sim, é isso, mas muito mais. Algo de
longe mais patético e trágico do que a dissolução física está contido no termo.
O salário do pecado é a morte espiritual.
O pecado separa de Deus, que é a fonte de toda vida. Isso foi manifestado no
Éden. Antes da Queda, Adão desfrutava de bendita companhia com seu Criador, mas
na própria véspera daquele dia que marcou a entrada do pecado em nosso mundo,
enquanto o Senhor Deus entrava no Jardim e sua voz era ouvida por nossos
primeiros pais, o par culpado escondeu-se entre as árvores do lugar.
Não mais poderiam eles gozar de comunhão
com ele que é sempre Luz, antes, ficaram alienados dele. Assim, também, se deu
com Caim: quando interrogado pelo Senhor ele disse: “Da tua face me esconderei”
(Gn 4.14). O pecado exclui da presença de Deus.
Essa foi a grande lição ensinada a Israel.
O trono de Jeová estava no meio deles, todavia não era mais acessível. Ele
habitava entre os querubins no santo dos santos e a esse ninguém poderia
chegar, com exceção do sumo sacerdote, e ele, apenas um dia por ano, levando
sangue consigo. O véu pendurado tanto no tabernáculo quanto no templo, vedando
o acesso ao trono divino, testemunhava o solene fato de que o pecado separa dele.
O salário do pecado é a morte, não somente
física, mas espiritual; não meramente natural mas, essencialmente, morte penal.
O que é morte física? É a separação da alma e do espírito do corpo. Assim, a
morte penal é a separação da alma e do espírito de Deus. A palavra da verdade
fala daquela que vive em prazer como “embora viva, está morta” (1Tm 5.6, ARA).
Repare, ainda, como a maravilhosa parábola do filho pródigo ilustra a força do
termo “morte”. Após o retorno do pródigo o pai disse: “Este meu filho estava
morto, e reviveu, tinha-se perdido, e foi achado” (Lc 15.24). Enquanto ele
estava na “terra longínqua”, não havia cessado de existir; não, ele não estava
morto fisicamente, mas espiritualmente — estava alienado e separado de seu pai!
Agora, na cruz, o Senhor Jesus estava
recebendo o salário que era devido por seu povo. Ele não tinha pecado algum que
fosse seu, pois era o Santo de Deus. Mas estava levando nossos pecados em seu
próprio corpo no madeiro (1Pd 2.24). Ele tinha tomado o nosso lugar e estava
padecendo o Justo pelo injusto. Ele estava carregando o castigo que nos traz a
paz [59]; e o salário de nossos pecados, o
sofrimento e castigo que era devido a nós, era “morte”. Não meramente física,
mas penal; e, como dissemos, isso significava separação de Deus, e daí o
Salvador ter clamado: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Assim, também, será com aquele que for
impenitente até o fim. O pavoroso destino que aguarda o perdido é, dessa forma,
exposto: “os quais sofrerão, como castigo, a perdição eterna, banidos da face
do senhor e da glória do seu poder” (2Ts 1.9, ARA). Separação eterna daquele
que é a fonte de todo bem e a origem de toda bênção. Ao ímpio, Cristo dirá:
“Apartai-vos de mim, malditos” [60]
— banimento de sua presença, um eterno exílio de Deus, é o que espera o
condenado eternamente. Essa é a razão por que o Lago de Fogo — a eterna morada
daqueles cujos nomes não estão escritos no livro da vida — é designada “A
Segunda Morte” (Ap 20.14). Não que haverá extinção do ser, mas separação eterna
do Senhor da Vida, uma separação a qual Cristo sofreu por três horas enquanto
estava pendurado no lugar do pecador. Na cruz, então, Cristo recebeu o salário do
pecado.
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
2. Aqui vemos a absoluta santidade e a
inflexível justiça de Deus.
A tragédia do Calvário deve ser vista de
pelo menos quatro pontos de vista. Na cruz o homem fez uma obra: ele mostrou
sua depravação ao pegar o Perfeito e com “mãos iníquas” [61]
pregando-o no madeiro. Na cruz Satanás fez uma obra: ele manifestou sua
insaciável inimizade contra a semente da mulher ferindo o calcanhar dele.[62]
Na cruz o Senhor Jesus fez uma obra: morreu o Justo pelos injustos [63]
para pudesse nos trazer a Deus. Na cruz Deus fez uma obra: ele exibiu sua
santidade e satisfez sua justiça derramando sua ira sobre aquele que foi feito
pecado por nós.
Que pena humana é capaz ou apropriada para
escrever acerca da imaculada santidade divina! Tão santo é Deus que o mortal não
pode vê-lo em seu ser essencial, e viver. Tão santo é Deus que os próprios céus
não são puros aos seus olhos.[64]
Tão santo é Deus que até os serafins cobriam suas faces com véus diante dele.[65]
Tão santo é Deus que, quando Abraão ficou de pé perante ele, clamou, “Sou pó e
cinza” (Gn 18.27). Tão santo é Deus que, quando Jó entrou em sua presença,
disse: “Por isso me abomino” (Jó 42.6). Tão santo é Deus que, quando Isaías
teve uma visão de sua glória, exclamou: “Ai de mim, que vou perecendo porque...
os meus olhos viram o rei, o Senhor dos Exércitos” (Is 6.5). Tão santo é Deus
que, quando Daniel o contemplou numa manifestação teofânica, declarou: “Não
ficou força em mim; desfigurou-se a feição do meu rosto” (Dn 10.8). Tão santo é
Deus que nos é dito: “Tu és tão puro de olhos que não podes ver o mal, e que
não podes contemplar a perversidade” (Hc 1.13). E foi porque o Salvador estava
levando nossos pecados que o trinamente santo Deus não o contemplou, virou sua
face dele, abandonou-o. O Senhor fez que se encontrasse em Jesus as iniqüidades
de nós todos: e nossos pecados estando sobre ele como nosso substituto, a ira
divina contra as nossas ofensas devesse passar sobre nossa oferta de pecado.
“Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” Essa era uma questão que nenhum daqueles ao redor da cruz podia
ter respondido; era uma questão que, ao mesmo tempo, nenhum dos apóstolos podia
ter respondido; sim, era uma questão que havia confundido os anjos no céu,
deixando-os sem resposta. Mas o Senhor Jesus havia respondido sua própria
questão, e sua resposta é achada no Salmo 22. Esse salmo fornecia a mais
maravilhosa predição profética de seus sofrimentos. Ele abre com as próprias
palavras da quarta elocução de nosso Salvador sobre a cruz, e é seguido por
mais soluços de agonia no mesmo tom até que, no versículo 3, achamo-lo dizendo
— “Tu és Santo”. Ele se queixa, não da injustiça, antes reconhece a retidão de
Deus — tu és santo e justo em cobrar de minhas mãos toda a dívida para a qual
me fiz fiador; tenho de responder pela totalidade dos pecados de todo meu povo
e, por conseguinte, ó Deus, és parte legítima em me golpear com tua espada
desperta. Tu és santo; tu és puro quando julgas.
Na cruz, então, como em nenhum outro
lugar, vemos a infinita malignidade do pecado e da justiça divina na punição
desse. Não foi o mundo antigo coberto pelas águas? Não foram Sodoma e Gomorra
destruídas por uma tempestade de fogo e enxofre? Não foram as pragas enviadas
sobre o Egito e Faraó e seus exércitos afogados no Mar Vermelho? Nesses casos,
o demérito do pecado e o ódio de Deus por ele puderam ser vistos; mas muito
mais o é aqui, em que Cristo é desamparado por ele. Vá ao Gólgota e veja o
Homem que é Companheiro de Jeová bebendo do copo da indignação do Pai,
castigado pela espada da justiça divina, ferido pelo próprio Senhor, sofrendo
até a morte, pois Deus “não poupou seu próprio Filho” [66]
quando o pendurou no lugar do pecador.
Eis como a própria natureza antecipara a
terrível tragédia — o próprio contorno do chão se assemelha a um crânio. Eis a
terra tremendo sob a poderosa carga da ira despejada. Eis os céus e o sol
fugirem de uma tal cena, e a terra ser coberta de trevas. Aqui podemos ver a
pavorosa cólera de um Deus que vinga o pecado. Nem todos os relâmpagos do
julgamento divino que foram liberados nos tempos do Antigo Testamento, nem
todas as taças da ira que serão despejadas sobre uma Cristandade apóstata
durante os tempos sem paralelos da Grande Tribulação,[67]
nem todo choro e lamento e ranger de dentes dos condenados para sempre no Lago
de Fogo jamais deram ou mesmo darão uma tal demonstração da inflexível justiça
de Deus e de sua inefável santidade, de seu infinito ódio ao pecado, como o fez
a ira divina que ardeu contra seu próprio Filho na cruz. Porque estava sofrendo
o horripilante julgamento do pecado, foi desamparado por Deus. Aquele que era o
Santo, cuja própria repulsa ao pecado era infinita, que era a pureza encarnada
(1Jo 3.3), [Deus] “o fez pecado por nós” (2Co 5.21); portanto, ele se curvou
mesmo perante a tempestade de ira, na qual foi mostrado o desprazer divino
contra os incontáveis pecados de uma grande multidão que homem algum pode
numerar. Essa, então, é a verdadeira explicação do Calvário. O santo caráter de
Deus não podia fazer nada senão julgar o pecado, mesmo que fosse achado no
próprio Cristo. Na cruz, pois, a justiça divina foi satisfeita e sua santidade
reivindicada.
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
3. Vemos aqui a explicação do Getsêmane.
À medida que nosso bendito Senhor se
aproximava da cruz o horizonte para ele se escurecia mais e mais. Desde a mais
tenra infância ele havia sofrido por causa do homem; desde o princípio de seu
ministério público ele havia sofrido por causa de Satanás; porém, na cruz ele
devia sofrer na mão de Deus. O próprio Jeová devia ferir o Salvador, e era isso
que obscurecia tudo o mais. No Getsêmane ele adentrou na escuridão das três
horas de trevas na cruz. Eis o porquê de ele deixar os três discípulos nas
imediações do jardim, pois ele devia pisar o lagar sozinho. “A minha alma está
profundamente triste” [68],
ele clamou. Isso não era recuar, horrorizado, antecipando uma morte cruel. Não
era o pensamento da traição por seu próprio amigo com quem estava
familiarizado, nem da deserção por seus estimados discípulos na hora da crise,
nem da expectativa das zombarias e ultrajes, dos açoites e dos pregos, que
oprimia sua alma. Não, toda essa angústia da mais severa ao seu espírito
sensível, nada era se comparada com a que ele teve de suportar como Portador do
Pecado.
“Então chegou Jesus com eles a um lugar
chamado Getsêmane, e disse aos seus discípulos: Assentai-vos aqui, enquanto vou
além orar. E levando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a
entristecer-se e a angustiar-se muito. Então lhes disse: A minha alma está cheia
de tristeza até à morte; ficai aqui, e velai comigo. E, indo um pouco mais para
diante, prostrou-se sobre o seu rosto, orando e dizendo: Meu Pai, se é
possível, passe de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como
tu queres.” (Mt 26.36-39).
Aqui ele observa as negras nuvens
surgindo, vê a terrível tempestade chegando, ele premeditava o inexprimível
horror daquelas três horas de trevas e tudo o que elas continham. “A minha alma
está profundamente triste”, ele clama. O grego é mais enfático. Ele estava
cercado de tristeza. Ele estava completamente imerso na ira divina. Todas as
faculdades e poderes de sua alma estavam esmagados pela angústia.
S. Marcos
emprega uma outra forma de expressão — “Ele começou a ficar extremamente
atônito” (14.33, KJV). O original traz o significado de a maior extremidade do
pavor, como a que faz com que alguém ficar de cabelo em pé e o corpo arrepiado.
E, acrescenta Marcos, “e a ficar muito triste”, o que denota que havia um total
abatimento de espírito; seu coração estava derretido como cera à vista do
terrível cálice.
Mas o
evangelista Lucas, dentre todos, é o que usa os termos mais fortes: “E, posto
em agonia, orava mais intensamente. E o seu suor tornou-se em grandes gotas de
sangue, que corriam até o chão” (Lc 22.44). A palavra grega para “agonia” aqui,
quer dizer estar envolvido em um combate. Antes, ele combatera as oposições dos
homens e as do diabo, mas agora ele encara o cálice que Deus lhe dá a beber.
Era o que continha a ira não diluída do ódio divino para com o pecado. Isso
explica o porquê dele dizer: “Se queres, passa de mim este cálice”. O “cálice”
é o símbolo de comunhão, e não poderia haver comunhão alguma em sua ira, mas
somente em seu amor [69].
Entretanto, ainda que isso significasse ser cortado daquela, ele adiciona:
“Todavia, não se faça a minha vontade, mas a tua”. Todavia, tão grande foi sua
agonia que “seu suor tornou-se em grandes gotas de sangue, que corriam até o
chão”.
Pensamos que
não pode haver a menor dúvida de que o Salvador verteu gotas de sangue de
verdade. Seria diminuir aí o significado dizer que seu suor parecia sangue, mas
não o era realmente. Parece-nos que a ênfase está posta na palavra “sangue”.
Ele verteu sangue — exatamente como grandes gotas de água comumente. E vemos
aqui a adequação do lugar escolhido para ser a cena desse terrível mas
preliminar sofrimento. Getsêmane — ah, teu nome te denuncia! Tem o sentido de
prensa de azeite. Era o lugar onde o sangue vital das olivas era extraído por
pressão gota a gota! O lugar escolhido foi bem nomeado, pois. Era de fato um
apropriado escabelo para a cruz, um escabelo de agonia inexprimível e sem
paralelos. Na cruz, então, Cristo tomou todo o cálice que lhe foi apresentado
no Getsêmane.
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
4. Aqui vemos a inabalável fidelidade a
Deus do Salvador.
O abandono do Redentor por Deus era um
fato solene, e uma experiência que nada lhe deixava senão apoiar-se em sua fé.
A posição de nosso Salvador na cruz foi absolutamente singular. Isso pode ser
prontamente visto ao se contrastar suas próprias palavras faladas durante seu
ministério público com aquelas proferidas na própria cruz.
Antes dizia ele: “Eu bem sei que sempre me
ouves” (Jo 11.42); agora ele clama, “Deus meu, eu clamo de dia, e tu não me
ouves” (Sl 22.2)! Antes dizia ele: “E aquele que me enviou está comigo; o Pai
não me tem deixado só” (Jo 8.29); agora ele clama, “Deus meu, Deus meu, por que
me DESAMPARASTE?” Ele não tinha absolutamente nada agora em que descansar senão
o pacto e a promessa de seu Pai; e em seu clamor de angústia, sua fé se torna
manifesta. Foi um brado de aflição, mas não de desconfiança.
Deus havia se retirado dele, mas note como
sua alma ainda se apega a ele. Sua fé triunfou segurando-se em Deus mesmo em
meio às trevas. “Deus meu”, diz, “Deus meu”, tu com quem está a infinita e
perpétua força; tu que apoiaste até aqui minha humanidade e, conforme tua
promessa, sustentaste teu servo — Ó, não fiques longe de mim agora. Deus meu,
eu me apóio em ti. Quando todos os confortos visíveis e sensíveis haviam
desaparecido, da invisível proteção e refúgio de sua fé o Salvador se vale.
No salmo de número vinte e dois a
inabalável fidelidade do Salvador a Deus fica mais aparente. Nesse precioso
texto fala-se das profundezas de seu coração. Ouça-o:
Em ti confiaram nossos pais; confiaram, e
tu os livraste. A ti clamaram e escaparam; em ti confiaram, e não foram
confundidos. Mas eu sou verme, e não homem, opróbrio dos homens e desprezado do
povo. Todos os que me vêem zombam de mim, estendem os beiços e meneiam a
cabeça, dizendo: Confiou no Senhor, que o livre; livre-o, pois nele tem prazer.
Mas tu és o que me tiraste do ventre, o que me preservaste estando ainda aos
seios de minha mãe. Sobre ti fui lançado desde a madre; tu és o meu Deus desde
o ventre de minha mãe. (Sl 22.4-10).
O próprio ponto em que seus inimigos
procuraram levantar contra ele foi a sua fé em Deus. Escarneceram dele por sua
confiança em Jeová — se ele realmente confiava no Senhor, o Senhor livrá-lo-ia.
Porém, o Salvador continuava confiando ainda que não houvesse livramento algum,
confiava ainda que desamparado por um período! Foi lançado sobre Deus desde o
ventre e ainda é lançado sobre ele na hora de sua morte. Ele prossegue:
Não te alongues de mim, pois a angústia está
perto, e não há quem ajude. Muitos touros me cercaram; fortes touros de Basã me
rodearam. Abriram contra mim suas bocas, como um leão que despedaça e que ruge.
Como água me derramei, e todos os meus ossos se desconjuntaram; o meu coração é
como cera, derreteu-se no meio das minhas entranhas. A minha força se secou
como um caco, e a língua se me pega ao paladar, e me puseste no pó da morte.
Pois me rodearam cães; o ajuntamento dos malfeitores me cercou,
transpassaram-se as minhas mãos e os pés. Poderia contar todos os meus ossos;
eles vêem e me contemplam. Repartem entre si os meus vestidos, e lançam sortes
sobre a minha túnica. Mas tu, Senhor, não te alongues de mim; força minha,
apressa-te em socorrer-me. Livra a minha alma da espada, e a minha predileta da
força do cão (Sl 22.11-20).
Jó tinha dito de Deus “Ainda que ele me
mate, nele esperarei” e, embora a ira divina contra o pecado repousasse sobre
Cristo, ele ainda confiava. Sim, sua fé fez mais do que confiar, ela triunfou —
“Salva-me da boca do leão, sim, ouve-me, desde as pontas dos unicórnios” (Sl
22.21).
Ó, que exemplo o Salvador deixou para o
seu povo! É relativamente fácil confiar em Deus quando brilha o sol, o teste
chega quando tudo está em escuridão. Mas uma fé que não confia em Deus na adversidade
tanto quanto na prosperidade não é a fé dos seus eleitos. Devemos ter fé por
que vivermos — fé de verdade — se a tivermos para por ela morrer. O Salvador
fora lançado sobre Deus desde a madre, fora lançado sobre Deus momento a
momento durante todos aqueles trinta e três anos, o que não é de se maravilhar,
então, que na hora da morte seja encontrado ainda lançado sobre Deus. Seus
companheiros cristãos podem estar tristes contigo, podes não mais contemplar a
luz da face divina. A Providência parece olhar com desdém para ti, entretanto,
ainda dizes, Eli, Eli, Deus meu, Deus meu.
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
5. Aqui podemos ver a base da nossa
salvação.
Deus é santo e, por conseguinte, não
aceita ver pecado. Ele é justo e, portanto, julga o pecado em qualquer lugar
onde seja encontrado. Mas Deus também é amor: Ele se deleita na misericórdia e,
em conseqüência, a infinita sabedoria ideou um meio pelo qual a justiça pudesse
ser satisfeita e a misericórdia liberada para fluir aos culpados pecadores.
Esse meio foi o da substituição, o justo padecendo pelo injusto. O próprio
Filho de Deus foi o selecionado para ser o substituto, pois nenhum outro
satisfaria. Através de Naum, a questão fora feita: “Quem pode manter-se diante
do seu furor? e quem pode subsistir diante do ardor da sua ira?” (1.6, ARA).
Essa questão recebeu sua resposta na adorável pessoa de nosso Senhor e Salvador
Jesus Cristo. Só ele podia “manter-se”. Somente um podia levar a maldição e
ainda ressurgir como um vitorioso sobre ela. Somente um podia suportar toda a
ira vingativa e, todavia, glorificar a lei e torná-la digna de honra. Somente
um podia suportar que seu calcanhar fosse ferido por Satanás e contudo naquela
ferida destruir a ele, que tinha o poder da morte. Deus sustentou um que era
“poderoso” (Sl 89.19, ARA). Um que era ninguém menos que o Companheiro de
Jeová, o resplendor da sua glória, a expressa imagem de sua pessoa[70].
Desse modo, vemos que o amor ilimitado, a
justiça inflexível e o poder onipotente combinaram-se todos para tornar
possível a salvação daqueles que crêem.
Na cruz, todas as nossas iniqüidades foram
postas sobre Cristo e, portanto, o julgamento divino recaiu sobre ele. Não
havia nenhum meio de transferência de pecado sem também transferir sua pena. Tanto
o pecado quanto sua punição foram transferidos para o Senhor Jesus. Na cruz ele
estava fazendo propiciação, e propiciação é apenas para com Deus. Era uma
questão de ir de encontro aos reclames divinos de santidade; era uma questão de
satisfazer as exigências de sua justiça. Não só foi o sangue de Cristo vertido
por nós, mas também vertido para Deus: ele “se entregou a si mesmo por nós, em
oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave” (Ef 5.2). Dessa forma, isso foi
prefigurado na memorável noite da Páscoa no Egito: o sangue do cordeiro deve
estar onde o olho de Deus o possa ver — “Vendo eu sangue, passarei por cima de
vós”.[71]
A morte de Cristo na cruz foi uma morte
maldita: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós;
porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro” (Gl
3.13). A “maldição” é alienação de Deus. Isso fica evidente pelas palavras que
Cristo ainda dirá àqueles que estarão à sua esquerda no dia de seu poder —
“Apartai-vos de mim, malditos”, ele dirá (Mt 25.41). A maldição é desterro da
presença e glória divinas.
Isso explica o sentido de vários tipos do
Antigo Testamento. O boi que era morto anualmente no Dia da Expiação, após seu
sangue ter sido espargido sobre e diante do propiciatório, era removido para um
lugar “fora (exterior) do arraial” (Lv 16.27) e ali seu cadáver era queimado
por inteiro. Era no centro do acampamento que Deus tinha sua residência, e a
exclusão do acampamento significava banimento de sua presença. Assim também com
o leproso. “Todos os dias em que a praga estiver nele, será imundo; imundo
está, habitará só; a sua habitação será fora do arraial” (Lv 13.46) — isso
porque aquele era o tipo encarnado do pecador. Aqui, ainda, está o antítipo da
“serpente de bronze”. Por que Deus instruiu Moisés a colocar uma “serpente”
sobre uma haste, e ordenou aos israelitas mordidos para olhar para ela? [72]
Imagine uma serpente como tipo de Cristo, o Santo de Deus! Sim, mas ela
representava-o como “[feito] maldição por nós”, pois a serpente era a lembrança
da maldição. Na cruz, então, Cristo estava cumprindo esses símbolos do Antigo
Testamento. Ele estava “fora do arraial” (compare Hebreus 13.12) — separado da
presença de Deus. Ele era o “leproso” — feito pecado por nós. Ele era como a
“serpente de bronze” — feito maldição por nós. Daí, também, o profundo
significado da coroa de espinhos — o símbolo da maldição! Levantado, coroado de
espinhos, para mostrar que estava levando a maldição em nosso lugar.
Aqui, também, está a significação das três
horas de trevas que cobriram a terra como uma mortalha de morte. Era uma
escuridão sobrenatural. Não era noite, pois o sol estava em seu zênite. Como
bem o disse o Sr. Spurgeon, “Fez-se meia-noite ao meio-dia”. Não foi eclipse
algum. Os astrônomos competentes nos dizem que ao tempo da crucificação a lua
estava à sua maior distância do sol. Mas esse brado de Cristo dá o sentido das
trevas, enquanto que essas nos dão o significado daquele amargo brado. Somente
uma coisa pode explicar tal escuridão, visto que uma coisa apenas pode
interpretar tal clamor — que Cristo havia tomado o lugar dos culpados e
perdidos, que ele se pôs no lugar para levar os pecados, que ele estava
sofrendo o julgamento devido por seu povo, que ele que não conheceu pecado
“[Deus] o fez pecado” por nós. Aquele brado foi proferido para que a nós fosse
concedido saber do que se passava ali. Era a manifestação da expiação, por
assim dizer, pois três (três horas) é sempre o número de manifestação. Deus é
luz e as “trevas” é o sinal natural de sua repulsa. O Redentor foi deixado
sozinho com o pecado do pecador: tal era a explicação das três horas de
escuridão. Assim como repousará sobre o condenado eternamente uma dupla miséria
no lago de fogo, a saber, a dor do sentido e a dor da perda; do mesmo modo,
Cristo, em correspondência, sofreu a ira de Deus derramada sobre si e também o
afastamento de sua presença e comunhão.
Para o crente a cruz é interpretada em
Gálatas 2.20: “Estou crucificado com Cristo”. Ele foi o meu substituto; Deus
considera-me um com o Salvador. Sua morte foi a minha. Ele foi ferido por
minhas transgressões e ferido por minhas iniqüidades. O pecado não foi
afastado, mas descartado. Como disse alguém: “Porque Deus julgou o pecado sobre
o Filho, ele agora aceita o pecador crente no Filho”.
Nossa vida está escondida com Cristo em
Deus (Cl 3.3). Eu estou encerrado em Cristo porque Cristo foi excluído de Deus.
Ele sofreu em nosso lugar, ele salvou seu
povo assim; A maldição que caiu sobre sua cabeça, era por direito devida por
nós. A tempestade que curvou sua bendita cabeça, é apaziguada para sempre agora
E o descanso divino é meu no lugar, enquanto ele está coroado de glória. [73]
Aqui então está a base da nossa salvação.
Nossos pecados foram levados. As reivindicações divinas contra nós foram
plenamente satisfeitas. Cristo foi desamparado por Deus por um tempo para que pudéssemos
desfrutar da sua presença para sempre. “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” Que toda alma crente dê a resposta: ele adentrou as terríveis
trevas para que eu pudesse andar na luz; ele bebeu o cálice de angústia para
que eu pudesse beber o cálice de gozo; ele foi abandonado para que eu pudesse
ser perdoado!
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
6. Aqui vemos a suprema evidência do amor
de Cristo por nós.
“Ninguém tem maior amor do que este: de
dar alguém a sua vida pelos seus amigos” (Jo 15.13). Mas a grandeza do amor de
Cristo pode ser estimada somente quando estamos aptos a mensurar o que estava
envolvido nesse “dar” a sua vida. Como vimos, significava muito mais do que a morte física,
mesmo que essa fosse de indizível vergonha, e indescritível sofrimento.
Significava que ele tinha de tomar o nosso lugar e ser feito “pecado” por nós,
e o que isso envolvia só pode ser julgado à luz de sua pessoa.
Imagine uma mulher perfeitamente honrada e
virtuosa forçada a suportar, por algum tempo, a associação com o que há de mais
vil e impuro. Imagine-a encerrada num antro de iniqüidade, rodeada pelos mais
grosseiros dentre os homens e as mulheres, e sem nenhum meio de escape. Você
pode avaliar sua repulsa às blasfêmias de suas bocas sujas, à farra de
embriaguez, à obscenidade dos arredores? Você pode formar uma opinião do que
uma mulher pura sofreria em sua alma em meio a tal impureza? Mas a ilustração
é, de longe, falha, pois não há nenhuma mulher absolutamente pura. Honrada,
virtuosa, moralmente pura, sim, porém, pura no sentido de ser sem pecado,
espiritualmente pura, não. Mas Cristo era puro; absolutamente puro. Ele era o
Santo. Ele tinha uma infinita aversão ao pecado. Ele o aborrecia. Sua alma
santa se esquivava dele. Mas, na cruz, nossas iniqüidades foram todas postas
sobre ele, e o pecado — essa coisa vil — envolvia-se em torno dele como uma
horrível serpente enrolada. E, contudo, ele de bom grado sofreu por nós! Por
quê? Porque nos amou: “Como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os
até ao fim” (Jo 13.1).
Mas mais ainda: a grandeza do amor de
Cristo por nós pode ser avaliada apenas quando somos capazes de medir a ira
divina que foi derramada sobre ele. Era disso que sua alma se esquivava. O que
isso significou para ele, o que custou a ele, pode se saber em parte por um
minucioso exame dos salmos nos quais se nos permite ouvir algo de seus
patéticos solilóquios e petições a Deus. Falando com antecipação, o próprio
Senhor Jesus pelo Espírito clamou através de Davi:
“Livra-me, ó Deus, pois as
águas entraram até à minha alma. Atolei-me em profundo lamaçal, onde se não
pode estar em pé; entrei na profundeza das águas, onde a corrente me leva. Estou
cansado de clamar; secou-se-me a garganta; os meus olhos desfalecem esperando o
meu Deus.
Tira-me do lamaçal, e não me
deixes atolar; seja eu livre dos que me aborrecem, e das profundezas das águas.
Não me leve a corrente das águas e não me sorva o abismo, nem o poço cerre a
sua boca sobre mim.
E não escondas o teu rosto do
teu servo, porque estou angustiado; ouve-me depressa. Aproxima-te da minha
alma, e resgata-a; livra-me por causa dos meus inimigos. Bem conheces a minha
afronta, e a minha vergonha, e a minha confusão; diante de ti estão todos os
meus adversários. Afrontas me quebrantaram o coração, e estou fraquíssimo.
Esperei por alguém que tivesse compaixão, mas não houve nenhum; e por
consoladores, mas não os achei.” (Sl 69.1-3, 14, 15, 17-20)
E outra vez: “Um abismo chama outro
abismo, ao ruído das tuas catadupas; todas as tuas ondas e vagas têm passado
sobre mim” (Sl 42.7). A aversão divina ao pecado sobreveio impetuosa e rebentou
sobre o Portador do Pecado. Aguardando de modo expectante a terrível angústia
da cruz, ele clamou através de Jeremias: “Não vos comove isto a todos vós que
passais pelo caminho? Atendei, e vede, se há dor como a minha dor, que veio
sobre mim, com que me entristeceu o Senhor, no dia do furor da sua ira” (Lm
1.12). Essas são algumas das passagens que nos sugerem e pelas quais podemos julgar
o indizível horror com que o Santo contemplava aquelas três horas na cruz,
horas nas quais estava condensado o equivalente a uma eternidade no inferno. O
amado do Pai deve ter a luz da face de Deus ocultada dele; ele deve ser deixado
sozinho nas trevas exteriores.
Aqui tinha amor incomparável e
imensurável. “Se queres, passa de mim este cálice”, ele clamou. Mas não era
possível que seu povo fosse salvo a menos que ele bebesse até a última gota
daquele copo de desgraça e ira; e, porque não havia nenhum outro que podia
bebê-lo, ele o fez. Bendito seja seu nome! Onde o pecado havia trazido o homem,
o amor trouxe o Salvador.
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
7. Aqui vemos a destruição da “esperança
maior”.
Esse clamor do Salvador prenuncia a
condição final de toda alma perdida —
abandonada por Deus! A fidelidade nos obriga a alertar o leitor acerca dos
falsos ensinos de hoje. É-nos dito que Deus ama a todos, e que ele é misericordioso
demais para em algum tempo levar a cabo as ameaças de sua palavra.
Exatamente como a antiga serpente
argumentou com Eva. Deus tinha dito: “No dia em que dela comeres, certamente
morrerás”. A serpente disse: “Certamente não morrereis”. Mas qual palavra evidenciou
ser verdadeira? Não a do diabo, pois ele é mentiroso desde o princípio [74]. A ameaça divina foi cumprida, e nossos
primeiros pais morreram espiritualmente no dia em que desobedeceram à sua ordem.
Isso se provará também num dia vindouro.
Deus é misericordioso; o fato dele ter
provido um Salvador, leitor, demonstra-o. O fato de que ele convida você para
receber a Cristo como seu Salvador evidencia sua misericórdia. O fato de que
ele é tão longânime com você, que suporta a sua obstinada rebelião até agora,
que prolongou o seu dia de graça até o presente momento, prova-o. Mas há um
limite para a sua misericórdia. O dia da misericórdia em breve findará. A porta
de esperança em breve será trancada. A morte pode rapidamente ceifar a ti, e
após essa vem “o juízo”.[75]
E no Dia do Juízo Deus vai tratar com justiça e não com misericórdia. Ele
vingará a misericórdia da qual você desdenhou. Ele executará a sentença de
condenação já passada sobre você: “Quem não crer será condenado” (Mc 16.16).
Não repetiremos novamente o que já
dissemos em detalhes; basta por ora lembrar o leitor mais uma vez como esse
brado de Cristo testemunha do ódio divino ao pecado. Porque é justo e santo,
Deus deve julgar o pecado onde quer que ele seja encontrado. Se então ele não
poupou o Senhor Jesus quando o pecado foi achado sobre ele, que esperança pode
haver, leitor não salvo, de que ele poupará a ti quando estiveres diante dele
no grande trono branco com pecado sobre ti? Se Deus derramou sua ira em Cristo
enquanto pendurado como fiador de seu povo, fique certo de que ele, com a mais
absoluta certeza, derrama-la-á sobre você, se morrer em seus pecados. A palavra
da verdade é explícita: “Aquele que não crê no Filho não verá a vida, mas a ira
de Deus sobre ele permanece” (Jo 3.36). Deus “não poupou” seu próprio Filho
quando tomou o lugar do pecador, e não poupará a quem rejeita o Salvador.
Cristo ficou separado de Deus por três horas, e se você finalmente rejeitá-lo
como seu Salvador, também o será, para sempre — “os quais sofrerão, como
castigo, a perdição eterna, banidos da face do senhor” (2Ts 1.9, ARA).
“Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?”
Eis aqui um Brado de Desolação — Leitor, possa você nunca
ecoá-lo.
Eis aqui um Brado de Separação — Leitor, possa você jamais
experimentá-lo.
Eis aqui um Brado de Expiação — Leitor, possa você apropriar-se
de suas virtudes salvíficas.
5. A PALAVRA DE SOFRIMENTO
“Sabendo Jesus que já todas as
coisas estavam terminadas, para que a Escritura se cumprisse, disse: Tenho sede”
João 19.28
“TENHO SEDE”. Tais palavras foram faladas
pelo Salvador padecente um pouco antes de ele curvar sua cabeça e render o
espírito. Somente são registradas pelo evangelista João e, como podemos ver, é
conveniente que elas devam ter lugar em seu evangelho, pois não apenas
demonstram sua humanidade, mas também salientam sua glória divina.
“Tenho sede”. Que texto para um sermão! Um
sermão curto e verdadeiro, e contudo quão abrangente, quão expressivo, e quão
trágico! O Criador dos céus e da terra com os lábios ressecados! O Senhor da
glória precisando de um gole de água! O Amado do Pai clamando, “Tenho sede!”
Que cena! Que palavra, essa! Claramente, nenhuma pena não inspirada traçou um
quadro desses.
Outrora o Espírito de Deus moveu Davi a
dizer a respeito do Messias vindouro: “Deram-me fel por mantimento, e na minha
sede me deram a beber vinagre” (Sl 69.21). Quão maravilhosamente completa foi a
previsão da profecia! Nenhum item essencial lhe estava faltando. Todo detalhe
importante da grande tragédia fora escrito de antemão. A traição por um amigo
íntimo (Sl 41.9), a deserção dos discípulos por ficarem escandalizados com ele
(Sl 31.11), a acusação falsa (Sl 35.11), o silêncio perante seus juízes (Is
53.7), sua ausência de culpa provada (Is 53.9), o ser contado entre os transgressores
(Is 53.12), o ser crucificado (Sl 22.16), a zombaria dos espectadores (Sl
109.25), o escárnio pelo não-livramento (Sl 22.7, 8), o sorteio de suas vestes
(Sl 22.18), a oração por seus inimigos (Is 53.12), o ser desamparado por Deus
(Sl 22.1), a sede (Sl 69.21), o render de seu espírito nas mãos do Pai (Sl
31.5), os ossos não quebrados (Sl 34.20), o sepultamento na tumba de um rico
(Is 53.9); tudo claramente predito séculos antes de se suceder. Que evidência
convincente da inspiração divina das escrituras!
Quão firme fundamento vós, santos do
Senhor, está posto para sua fé, na sua palavra excelente!
“Tenho sede”. O fato que está aqui
registrado como uma das sete elocuções de nosso Senhor na cruz sugere que seja
uma palavra de precioso significado, uma palavra para ser entesourada em nossos
corações, uma palavra merecedora de prolongada meditação.
Temos visto que cada um dos ditos
anteriores do Salvador padecente tem muito a nos ensinar e, certamente, esse
não pode ser uma exceção. O que então podemos deduzir dele? Quais são as lições
que essa quinta palavra da série nos ensina? Possa o Espírito da verdade
iluminar nosso entendimento à medida que nos esforçamos para fixar nela nossa
atenção.
“Tenho sede”
1. Temos aqui uma prova da humanidade de
Cristo.
O Senhor Jesus era Deus verdadeiro de Deus
verdadeiro, mas também foi homem verdadeiro vindo de homem verdadeiro. Isso é
algo para ser crido e não para que a orgulhosa razão sobre ele especule. A
pessoa de nosso adorável Salvador não é um objeto adequado para a diagnose
intelectual; antes, devemos nos curvar diante dele em adoração. Ele mesmo nos
avisou: “Ninguém conhece o Filho, senão o Pai” (Mt 11.27). E outra vez o
Espírito de Deus, através do apóstolo Paulo, declara: “E evidentemente é grande
o mistério da piedade com que Deus se manifestou em carne” (1Tm 3.16, Vulgata [76]).
Enquanto pois há muita coisa acerca da pessoa de Cristo que nos é insondável ao
próprio entendimento, todavia, tudo que há sobre ele é para se admirar e
prestar adoração: em primeiro lugar, sua deidade e humanidade, e a perfeita
união dessas duas em uma única pessoa. O Senhor Jesus não foi um homem divino,
nem um Deus humanizado; foi o Deus-homem. Para sempre Deus, e agora para sempre
homem.
Quando o Amado do Pai encarnou-se, não
cessou de ser Deus, nem pôs de lado nenhum de seus atributos divinos, ainda que
tenha se despojado da glória que tinha com o Pai antes de haver o mundo. Mas na
encarnação, o Verbo se fez carne e tabernaculou [77]
entre os homens. Ele não deixou de ser tudo o que era anteriormente, mas tomou
para si o que não tinha antes — humanidade perfeita.
A deidade e a humanidade do Salvador
foram, cada uma delas, contempladas na predição messiânica. A profecia
representava aquele que havia de vir, ora como divino, ora como humano. Ele era
o “Renovo do Senhor” (Is 4.2). Ele era o Maravilhoso, o Conselheiro, o Deus
forte, o Pai dos séculos (Hebreus [78]),
o “Príncipe da paz” (Is 9.6). Aquele que haveria de sair de Belém e ser rei em
Israel, era aquele cujas saídas são desde os dias da eternidade (Mq 5.2). Ele
era ninguém menos do que o próprio Jeová que apareceria de repente no templo
(Ml 3.1). Todavia, por outro lado, ele era a “semente” da mulher (Gn 3.15); um
profeta como Moisés (Dt 18.18); um descendente da linhagem de Davi (2Sm
7.12,13). Ele era o “servo” de Jeová (Is 42.1). Ele era o “homem de dores” (Is
53.3). E é no Novo Testamento que nós vemos esses dois diferentes grupos de
profecias harmonizados.
Aquele nascido em Belém era o Verbo
divino. A Encarnação não significa que Deus se manifestou como um homem. O
Verbo se fez carne; tornou-se o que não era antes, ainda que nunca cessasse de
ser tudo o que fora anteriormente. Aquele que era em forma de Deus e que não
teve por usurpação ser igual a Deus “aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma
de servo, fazendo-se semelhante aos homens” (Fp 2.6,7). O bebê de Belém era
Emanuel — Deus conosco —, era mais do que uma manifestação de Deus, ele era
Deus manifestado em carne. Era tanto Filho de Deus como Filho do Homem.
Não duas personalidades separadas, mas uma
pessoa possuindo as duas naturezas — a divina e a humana.
Enquanto aqui na terra, o Senhor Jesus deu
provas completas de sua divindade. Ele falava com sabedoria divina, ele agia em
santidade divina, ele exibia poder divino, e ele mostrava amor divino. Ele lia
as mentes dos homens, movia seus corações e compelia-os em suas vontades.
Quando a ele agradava exercer seu poder, toda a natureza ficava sujeita ao seu
mando. Uma palavra dele e a enfermidade saía, uma tempestade era acalmada, o
demônio partia, o morto retornava à vida. Tão verdadeiramente era ele Deus
manifesto em carne, que podia dizer: “Quem vê a mim vê o Pai”.[79]
Assim, também, quando tabernaculava entre
os homens, o Senhor Jesus dava total prova de sua humanidade — humanidade sem
pecado. Ele adentrou a esse mundo como bebê e estava envolto em panos (Lc 2.7).
Quando criança, é-nos dito, ele “crescia... em sabedoria, e em estatura” (Lc
2.52). Quando menino, encontramo-lo “interrogando” os doutores (Lc 2.46). Quando
homem, seu corpo esteve “cansado” (Jo 4.6). Ele “teve fome” (Mt 4.2). Ele
dormiu (Mc 4.38). Ele ficou “admirado” (Mc 6.6). Ele “chorou” (Jo 11.35). Ele
“orava” (Mc 1.35). Ele “se alegrou” (Lc 10.21). Ele “gemeu internamente” (Jo
11.33, Vulgata [80]).
E aqui em nosso texto ele clamou: “Tenho sede”. Isso demonstrava sua
humanidade. Deus não tem sede. Os anjos também não. Não a teremos na glória:
“Nunca mais terão fome, nunca mais terão
sede” (Ap 7.16). Mas temos sede agora, porque somos humanos e estamos vivendo
num mundo de dor. E Cristo ficou sedento porque era homem: “Pelo que convinha
que em tudo fosse semelhante aos irmãos” (Hb 2.17).
“Tenho sede”
2. Vemos aqui a intensidade dos
sofrimentos de Cristo.
Vamos primeiro considerar esse brado do
Salvador como uma expressão de seu sofrimento corporal. Para perceber algo do
que há por trás de tais palavras devemos relembrar e rever o que as precede.
Após instituir a Ceia no cenáculo, seguida pelo longo discurso pascal a seus
apóstolos, o Redentor transferiu-se para o Getsêmane e ali, por uma hora,
passou pela mais excruciante agonia. Sua alma estava extremamente triste.
Enquanto ele contemplava o terrível cálice dele escorria, não suor, mas grandes
gotas de sangue.
Sua luta no Jardim foi finda com o
aparecimento do traidor acompanhado pelo bando que viera prendê-lo. Ele foi
trazido perante Caifás e, ainda que fosse metade da noite, foi examinado e
condenado. O Salvador foi retido até de manhã cedo, e após as fatigantes horas
de espera haverem terminado, foi levado para diante de Pilatos. Seguindo um
longo julgamento, ordens foram dadas para que se o açoitassem. Em seguida, foi
conduzido, talvez atravessando direto pela cidade, à corte de julgamento de
Herodes e, depois de uma breve aparição perante esse prelado romano, foi
entregue às mãos dos brutais soldados. Novamente foi ele escarnecido e
chicoteado, e outra vez foi levado através da cidade, de volta a Pilatos. Mais
uma vez houve a enfadonha demora, as formalidades de um julgamento, se é que
uma tal farsa seja merecedora desse nome, seguida pela sentença de morte dada.
Então, com as costas sangrando, carregando
sua cruz sob o calor do sol do já quase meio-dia, ele caminhou até às
escarpadas alturas do Gólgota. Atingindo o lugar designado da execução, suas
mãos e pés foram pregados ao madeiro. Por três horas ele ficou ali pendurado
com os inclementes raios solares incidindo sobre sua cabeça coroada de
espinhos. Isso foi seguido pelas três horas de trevas que agora o cobria.
Aquela noite e aquele dia foram horas nas
quais uma eternidade foi condensada. Todavia, durante toda ela, nem uma só
palavra de murmuração passou em seus lábios. Não havia queixa alguma, nenhum
rogo por misericórdia. Todos os seus sofrimentos foram suportados em augusto
silêncio. Como uma ovelha muda perante seus tosquiadores, ele não abriu a sua
boca.[81]
Mas agora, no fim, seu corpo arruinado, dorido, sua boca ressecada, ele clama,
“Tenho sede”. Não foi um apelo por compaixão, nem um pedido pela mitigação de
seus sofrimentos; ele expressou a intensidade das agonias por que estava
passando.
“Tenho sede”. Isso era mais do que a sede
comum. Era algo mais profundo do que os sofrimentos físicos por detrás dela.
Uma comparação cuidadosa de nosso texto com o de Mateus 27.48 mostra tais
palavras “Tenho sede” seguidas imediatamente após a quarta elocução de nosso
Salvador na cruz — “Eli, Eli, lama sabactâni” — pois enquanto o soldado estava
pressionando a esponja embebida em vinagre nos lábios do padecente, alguns dos
espectadores gritaram: “Deixa, vejamos se Elias vem livrá-lo”. Todos sabemos
que as provações internas da alma reagem no corpo, destruindo os nervos e
afetando o vigor — “O espírito abatido virá a secar os ossos” (Pv 17.22);
“Enquanto eu me calei, envelheceram os meus ossos pelo meu bramido em todo o
dia. Porque de dia e de noite a tua mão pesava sobre mim; o meu humor se tornou
em sequidão de estio” (Sl 32.3,4). O corpo e a alma são solidários um com o
outro. Lembremo-nos de que o Salvador havia acabado de emergir das três horas
de trevas, durante as quais a face de Deus havia se retirado dele enquanto
sofria a fúria de sua ira derramada. Esse grito de sofrimento do corpo diz-nos,
então, da severidade do conflito espiritual que ele tinha acabado de passar!
Falando com antecedência pela boca de Jeremias dessa hora mesma, ele disse:
“Não vos comove isto a todos vós que passais pelo caminho? atendei, e vede, se
há dor como a minha dor, que veio sobre mim, com que me entristeceu o Senhor,
no dia do furor da sua ira. Desde o alto enviou fogo a meus ossos, o qual se
assenhoreou deles; estendeu uma rede aos meus pés, fez-me voltar para trás,
fez-me assolada e enferma todo o dia” (Lm 1.12,13). Sua “sede” foi o efeito da
agonia de sua alma no feroz calor da ira divina. Falava da seca da terra onde o
Deus vivo não está. Mais ainda: claramente expressava seu anelo por comunhão
novamente com ele, de quem ficara separado por três horas. Não foi o próprio
Cristo quem disse, pelo espírito de profecia, e o faz agora, assim que emergiu
das trevas: “Como o cervo brama pelas correntes de águas, assim suspira a minha
alma por ti, ó Deus! A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo: quando
entrarei e me apresentarei ante a face de Deus?” Não identificam as palavras
seguintes quem fala e não revelam elas o tempo em que aquele anelo e “suspiro”
foram expressos? “As minhas lágrimas servem-me de mantimento de dia e de noite,
porquanto me dizem constantemente: Onde está o teu Deus?” (Sl 42.1-3).
“Tenho sede”
3. Aqui vemos a profunda reverência de
nosso Senhor pelas escrituras.
Quão constantemente a mente do Salvador se
voltava aos oráculos sagrados! Ele de fato vivia de toda a palavra que sai da
boca de Deus.[82]
Era o “Bem-aventurado Homem” que meditava na lei de Deus “de dia e de noite”
(Sl 1). A palavra escrita era o que formava seus pensamentos, preenchia o seu
coração, e regulava os seus caminhos. As escrituras são a vontade do Pai
transcrita, e essa foi sempre o seu deleite. Na tentação, aqueles escritos
foram sua defesa. Em seu ensino os estatutos do Senhor foram sua autoridade. Em
suas controvérsias com os escribas e fariseus, sempre apelou à lei e ao
testemunho.[83]
E agora, na hora da morte, sua mente permanecia na palavra da verdade.
A fim de alcançar a força principal dessa
quinta elocução do Salvador na cruz, devemos reparar em seu contexto: “Sabendo
Jesus que já todas as coisas estavam terminadas, para que a Escritura se
cumprisse, disse: Tenho sede” (Jo 19.28). A referência é ao Salmo 69 — mais um
dos salmos messiânicos que descrevem tão vividamente sua paixão. No espírito de
profecia, havia declarado: “Deram-me fel por mantimento, e na minha sede me
deram a beber vinagre” (v. 21). Isso ainda estava sem ser concluído. As
predições dos versículos precedentes já tinham recebido seu cumprimento. Ele já
havia atolado no “profundo lamaçal” (v. 2); ele havia sido aborrecido “sem
causa” (v. 4); ele havia “suportado afrontas” e confusão (v. 7); ele havia se
“tornado como um estranho” para os seus irmãos (v. 8); ele havia se tornado “um
provérbio” para os seus injuriadores, e “a canção dos bebedores de bebida
forte” (vv. 11,12); ele havia “clamado a Deus” em sua angústia (vv. 17-20) — e
agora nada mais faltava senão oferecer a ele a bebida de vinagre e fel, e a fim
de cumprir isso foi que ele bradou: “Tenho sede”.
“Sabendo Jesus que já TODAS as coisas
estavam terminadas, para que a Escritura se cumprisse, disse: Tenho sede”. Quão
completamente calmo estava o Salvador! Ele estava pendurado naquela cruz por
seis horas e havia passado por sofrimento sem paralelo, e contudo sua mente
está clara e sua memória intacta. Tinha diante de si, com perfeita distinção,
toda a palavra divina. Ele revisava o escopo todo da predição messiânica. Ele
lembra-se de que há uma profecia escriturística que não foi levada a cabo. Ele
não passou por cima de nada. Que prova essa de que ele era divinamente superior
a todas as circunstâncias!
Antes de prosseguirmos devemos brevemente
indicar uma aplicação para nós mesmos. Temos observado como o Salvador se
curvou à autoridade da escritura tanto na vida quanto na morte; leitor cristão,
como isso se dá contigo? O livro divino é a corte final de apelação a você?
Você descobre nela uma revelação da mente e da vontade de Deus concernente a
você? Ela é uma lâmpada para os seus pés? [84]
Ou seja, você está andando em sua luz? [85]
Os seus mandamentos são obrigatórios para você?
Você está realmente obedecendo-a? Você
pode dizer com Davi, “Escolhi o caminho da verdade; propus-me seguir os teus
juízos. Apego-me aos teus testemunhos... Considerei os meus caminhos, e voltei
os meus pés para os teus testemunhos. Apressei-me, e não me detive, a observar
os teus mandamentos” (Sl 119.30,31,59,60)? Você, como o Salvador, está ansioso
por cumprir as escrituras? Ó, possam o escritor e o leitor buscar graça para
orar de coração: “Faze-me andar na vereda dos teus mandamentos, porque nela
tenho prazer. Inclina o meu coração a teus testemunhos... Ordena os meus passos
na tua palavra, e não se apodere de mim iniqüidade alguma” (Sl 119.35,36,133).
“Tenho sede”
4. Vemos aqui a submissão do Salvador à
vontade do Pai.
O Salvador estava com sede, e aquele que
tinha tal sede, lembremos, possuía todo o poder no céu e na terra.[86]
Houvesse ele escolhido exercitar sua onipotência, poderia prontamente ter
satisfeita a sua necessidade. Aquele que outrora fizera a água fluir da rocha
ferida para saciar Israel no deserto,[87]
tinha os mesmos recursos infinitos à sua disposição agora. Aquele que tornara a
água em vinho com uma palavra,[88]
poderia ter dito a palavra de poder aqui, e satisfazer a sua necessidade. Mas
ele, em nenhuma vez, operou um milagre para seu próprio benefício ou conforto.
Quando tentado por Satanás para assim agir, recusou. Por que agora ele declina
de atender a sua premente necessidade? Por que pendia na cruz com os lábios
ressecados? Porque no princípio do livro que expressava a vontade divina,
estava escrito que ele devia ter sede, e que, sedento, devia lhe ser “dado”
vinagre para beber. E ele aqui veio para fazer aquela vontade e, por isso, se
submete.
Na morte, como na vida, a escritura foi
para o Senhor Jesus a palavra autorizada do Deus vivo. Na tentação, recusara-se
a ministrar à sua necessidade à parte daquela palavra pela qual ele vivia 90 e
assim, agora, ele faz conhecida sua necessidade, não para que se pudesse
ministrar a ela, mas para que a escritura pudesse ser cumprida. Note que ele
mesmo não a cumpriu, a Deus pode ser confiado que cuide disso; mas ele dá
expressão à sua angústia de modo a fornecer ocasião para o seu cumprimento.
Como alguém disse: “A terrível sede da crucificação está sobre ele, mas que não
é suficiente para forçar seus lábios ressecados para falar; mas está escrito:
Na minha sede me deram a beber vinagre — isso abre os seus lábios” (F. W.
Grant). Aqui, então, como sempre, ele mostra a si mesmo em ativa obediência à
vontade de Deus, a qual ele veio para executar. Ele simplesmente diz, “Tenho
sede”; o vinagre é oferecido, e a profecia é cumprida. Que perfeita absorção na
vontade do Pai!
Novamente damos uma pausa para a aplicação
a nós mesmos — uma aplicação dupla. Primeiro, o Senhor Jesus se deleitava na
vontade do Pai mesmo quando envolvia o sofrimento da sede. Nós fazemos esse
tipo de renúncia para ele? Temos nós buscado graça para dizer: “Não se faça a
minha vontade, mas a tua”? [89]
Podemos nós exclamar, “Sim, ó Pai, porque assim te aprouve”? [90]
Temos nós aprendido em qualquer estado que seja a “viver contente” (Fp 4.11)?
Mas agora, observe um contraste. Ao Filho
de Deus foi negado um copo de água fria para aliviar seu sofrimento — quão
diferente conosco! Deus nos tem dado uma variedade de alívios para nós,
todavia, quão freqüentemente somos mal-agradecidos! Temos coisas melhores para
nos deliciar do que um copo d’água quando estamos sedentos, entretanto, amiúde
não somos gratos. Ó, se esse brado de Cristo fosse com mais credulamente
considerado, levar-nos-ia a bendizer a Deus pelo que nós agora quase
desprezamos, e geraria contentamento em nós pela mais comum das misericórdias.
O Senhor da glória clamou, “Tenho sede” e nada teve à sua volta para
confortá-lo, e tu, que tens mil vezes perdido todo direito às misericórdias
tanto temporais quanto espirituais, menosprezas as bondades comuns da
providência! Quê! murmuras de um copo de água, tu que mereces senão um copo de
ira. Ó, ponha isso no coração e aprenda a se contentar com o que tens, ainda
que seja mesmo as necessidades mais simples da vida. Não se queixe se você mora
apenas em uma humilde cabana, pois seu Salvador não tinha onde reclinar a
cabeça [91]!
Não se queixe se você não tem nada senão pão para comer, pois a seu Salvador
faltou isso por quarenta dias [92]!
Não se queixe se você tem apenas água para beber, pois a seu Salvador ela foi
negada até na hora da morte!
“Tenho sede”
5. Vemos aqui como Cristo pode se
solidarizar com seu povo sofredor.
O problema do sofrimento sempre foi um que
causou perplexidade. Por que o sofrimento deve ser necessário em um mundo que é
governado por um Deus perfeito? Um Deus que não apenas tem poder para impedir o
mal, mas que é amor.[93]
Por que deve haver dor e desgraça, doença e morte? À medida que olhamos o mundo
e tomamos conhecimento de suas incontáveis pessoas que sofrem, ficamos
desconcertados. Esse mundo não é senão um vale de lágrimas. Uma fina aparência
de alegria raramente tem êxito em esconder os tristes fatos da vida. Filosofar
sobre o problema do sofrimento traz [94]
parco alívio. Após todos os nossos
raciocínios, perguntamos, Deus vê? Há
conhecimento no Altíssimo? [95]
Ele realmente se importa? Como todas as questões, essas devem ser levadas à
cruz. Enquanto não acham elas uma resposta completa, entretanto elas encontram
sim aquela que satisfaz o coração ansioso. Enquanto o problema do sofrimento
não é plenamente resolvido aqui, todavia a cruz lança sim luz suficiente sobre
ele para aliviar a tensão. A cruz mostra-nos que Deus não ignora nossas dores,
pois na pessoa de seu Filho ele mesmo “tomou sobre si as nossas enfermidades, e
as nossas dores” (Is 53.4, ARA)! A cruz nos mostra que Deus não está desatento
às nossa tristeza e angústia, pois, ao se encarnar, ele próprio sofreu! A cruz
diz-nos que Deus não é indiferente à dor, pois no Salvador ele a experimentou!
Qual então o valor de tais fatos? Este:
“Porque não temos um sumo sacerdote que não pode compadecer-se das nossas
fraquezas; porém um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado” (Hb
4.15). Nosso Redentor não é alguém tão afastado de nós que seja incapaz de
entrar, solidariamente, em nossas tristezas, pois ele mesmo foi o “Homem de
Dores”.[96]
Aqui então está o conforto para o coração dorido. Não importa quão desalentado
possa estar você, não importa quão escarpada a sua senda e triste o seu
quinhão, você é convidado a pô-lo todo diante do Senhor Jesus e lançar todo seu
cuidado sobre ele, sabendo que “tem cuidado de vós” (1Pd 5.7). O seu corpo está
arruinado pela dor? Assim estava o dele! Você é mal interpretado, julgado
injustamente, deturpado? Assim era ele! Aqueles que lhe são mais próximos e
mais queridos deram às costas a você? Fizeram isso com ele! Você está em
trevas? Ele esteve assim por três horas! “Pelo que convinha que em tudo fosse
semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote” (Hb
2.17).
“Tenho sede”
6. Vemos aqui a expressão de uma
necessidade universal.
Quer o homem natural, o mundano,
articule-o ou não, seu clamor é, “Tenho sede”. Porque esse desejo consumidor
para adquirir bens? Por que esse desejo ardente pelas honras e aplausos do
mundo? Por que essa corrida louca por prazer, indo de uma forma a outra dele
com diligência persistente e incansável? Por que essa busca ávida por sabedoria
— essa investigação científica, esse empenho da filosofia, esse saque aos manuscritos
dos antigos, e essa experimentação incessante dos homens modernos? Por que essa
loucura por aquilo que é novo? Por quê? Porque há uma voz de dor na alma.
Porque há algo remanescente no homem
natural que não está satisfeito. Isso é verdadeiro tanto para o milionário
quanto para o camponês do interior que nunca esteve fora dos limites de sua
terra: viajando de um extremo a outro da terra e fazendo-o outra vez, não
consegue descobrir o segredo da paz. Sobre tudo o que as cisternas deste mundo
fornecem está escrito nas letras da verdade inefável: “Qualquer que beber desta
água tornará a ter sede” (Jo 4.13). Assim se dá com o homem ou a mulher
religiosos:
queremos dizer, os religiosos sem Cristo. Quantos há que vão pelo fatigante ciclo das ações religiosas, e nada encontram que satisfaça suas profundas necessidades! Eles são membros de uma denominação evangélica, freqüentam a igreja com regularidade, contribuem com seus recursos para o sustento do pastor, lêem suas Bíblias ocasionalmente, e algumas vezes oram, ou, se usam um “livro de orações”, dizem-nas toda noite. E contudo, afinal de contas, se eles são honestos, seu clamor ainda é, “Tenho sede”.
queremos dizer, os religiosos sem Cristo. Quantos há que vão pelo fatigante ciclo das ações religiosas, e nada encontram que satisfaça suas profundas necessidades! Eles são membros de uma denominação evangélica, freqüentam a igreja com regularidade, contribuem com seus recursos para o sustento do pastor, lêem suas Bíblias ocasionalmente, e algumas vezes oram, ou, se usam um “livro de orações”, dizem-nas toda noite. E contudo, afinal de contas, se eles são honestos, seu clamor ainda é, “Tenho sede”.
A sede é uma sede espiritual; eis o porquê
das coisas naturais não poder matá-la. Desconhecido deles mesmos, sua alma “tem
sede de Deus” (Sl 42.2). Deus nos fez, e só ele pode nos satisfazer. Disse o
Senhor Jesus: “Aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede” (Jo
4.14). Apenas Cristo pode saciar a nossa sede. Apenas ele pode satisfazer a
profunda necessidade dos nossos corações. Apenas ele pode comunicar aquela paz
de que o mundo nada sabe e nem a pode conceder ou tirar. Ó leitor, uma vez mais
eu me dirijo a tua consciência. Como está ela contigo? Descobriste que tudo
debaixo do sol é somente vaidade e aflição de espírito? [97]
Descobriste que as coisas terrenas são incapazes de satisfazer a seu coração? É
o brado de sua alma, “Tenho sede”? Então, não são boas notícias ouvir que há
alguém que pode satisfazer a ti? Dissemos alguém, não um credo, não uma forma
de religião, mas uma pessoa — uma pessoa viva, divina. Ele é o que diz: “Vinde
a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei” (Mt 11.28).
Atente então a esse doce convite. Venha a ele agora, assim como estás. Venha em
fé, crendo que ele te receberá, e então cantarás:
Vim a Jesus como estava,
Farto, cansado, e triste;
Nele encontrei um lugar de
descanso,
Ó, venha a Cristo. Não se detenha. Você
tem “sede”? Então você é aquele que está buscando: “Bem-aventurados os que têm
fome e sede de justiça, porque eles serão fartos” (Mt 5.6).
Leitor não salvo, não rejeite o Salvador,
pois se você morrer em seus pecados seu clamor para todo o sempre será, “Tenho
sede”. Esse é o lamento do condenado eternamente. No lago de fogo o perdido
sofrerá entre as chamas da ira divina por toda a eternidade. Se Cristo clamou
“Tenho sede” quando padecia da ira de Deus só por três horas, qual o estado
daqueles que terão de suportá-la eternamente! Quando milhões de anos tiverem se
passado, mais dez milhões haverá à frente. Há uma sede perene no inferno, que
não admite alívio algum. Lembre-se das pavorosas palavras do homem rico: “E,
clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e manda a Lázaro, que
molhe na água a ponta do seu dedo e me refresque a língua, porque estou
atormentado nesta chama” (Lc 16.24). Ó, meu leitor, pense. Se a sede física
extrema é insuportável mesmo quando suportada por algumas poucas horas, como
será aquela sede que está infinitamente além de qualquer sede do presente, e
que nunca será saciada! Não diga que é cruel da parte de Deus lidar desse modo
com suas criaturas que erram. Lembre ao que ele expôs seu querido Filho, quando
o pecado lhe foi imputado — seguramente, aquele que despreza a Cristo é
merecedor do mais quente lugar no inferno! Dizemo-lo outra vez, Receba-o agora
como seu. Receba-o como seu Salvador, e submeta-se a ele como seu Senhor.
“Tenho sede”
7. Aqui vemos a declaração de um princípio
permanente.
Há um sentido, um sentido real, em que
Cristo ainda tem sede. Ele está sedento pelo amor e pela devoção dos seus. Ele
anseia pela companhia do povo que comprou com seu sangue [99]. Eis aqui uma das grandes maravilhas da
graça — um pecador redimido pode oferecer aquilo que satisfaz o coração de
Cristo! Posso compreender como devo apreciar seu amor, mas quão maravilhoso que
ele — o todo-suficiente — deva apreciar o meu! Eu aprendi quão abençoada é para
minha alma a comunhão com ele, mas quem suporia que minha comunhão fosse
bendita para Cristo! Todavia o é. Por isso ele ainda “tem sede”. A graça nos
capacita a oferecer aquilo que o refrigera. Maravilhoso pensamento!
Você já reparou em João 4 que, embora Cristo
dissesse à mulher que veio ao poço, “Dáme de beber” — pois ele assentou-se ali
“cansado” da viagem e do calor — que ele nunca tomou um gole de água? Na
salvação e na fé daquela mulher samaritana ele achou aquilo que refrescou seu
coração! O amor nunca fica satisfeito até que haja uma resposta e amor em
troca! Assim o é com Cristo. Aqui está a chave para Apocalipse 3.20: “Eis que
estou à porta, e bato: se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei
em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo”.
Isso é amiúde aplicado ao não salvo, mas
sua referência principal é à Igreja. Descreve se Cristo buscando a companhia
dos seus. Ele fala de “cear”, e na escritura isso sempre simboliza comunhão, da
mesma forma que a Ceia do Senhor é uma oportunidade especial de comunhão entre
o Salvador e o salvo. E observe nessa passagem que Cristo fala de uma dupla
ceia — “entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo”. Não somente é
nosso inefável privilégio cear e comungar com ele, deleitarmo-nos nele, mas ele
“ceia” conosco. Ele encontra em nossa comunhão algo com que alimentar seu
coração, algo que o alivia, e esse algo é a nossa devoção e o nosso amor. Sim, o Cristo de Deus ainda “tem sede”, sede pela afeição dos seus. Ó, não oferecerá você algo que a ele satisfaça? Responda então ao apelo dele: “Põe-me como selo sobre o teu coração” (Ct 8.6).
coração, algo que o alivia, e esse algo é a nossa devoção e o nosso amor. Sim, o Cristo de Deus ainda “tem sede”, sede pela afeição dos seus. Ó, não oferecerá você algo que a ele satisfaça? Responda então ao apelo dele: “Põe-me como selo sobre o teu coração” (Ct 8.6).
6. A PALAVRA DE
VITÓRIA
“E, quando Jesus tomou o
vinagre, disse: Está consumado”
João 19.30
NOSSOS DOIS ÚLTIMOS ESTUDOS se ocuparam
com a tragédia da cruz; porém, voltamo-nos agora para o seu triunfo. Nestas
palavras, “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” ouvimos o brado de
desolação do Salvador; em “Tenho sede”, escutamos seu clamor de lamentação;
agora, chega aos nossos ouvidos seu brado de júbilo — “Está consumado”. Das
palavras da vítima voltamo-nos agora às palavras do conquistador. Um provérbio
diz que toda nuvem tem seu interior prateado: deu-se assim com a mais escura de
todas as nuvens. A cruz de Cristo tem dois grandes lados: ela mostrou a grande profundidade
de sua humilhação, mas também assinalou o objetivo da Encarnação, e mais, falou
da consumação de sua missão, e forma ela a base de nossa salvação.
“Está consumado”. Os antigos gregos
orgulhavam-se de serem capazes de dizer muita coisa falando pouco — “dar um mar
de assunto em uma gota de linguagem” era tido como a perfeição em oratória. O
que eles buscavam é encontrado aqui. “Está consumado”, no original, é apenas
uma palavra,[100]
todavia, nessa palavra está contido o evangelho de Deus; nessa palavra está
contido o fundamento da segurança do crente; nessa palavra é descoberta a
essência de todo gozo, bem como o próprio espírito de toda consolação divina.
“Está consumado”. Isso não foi o grito de
desespero de um mártir desamparado; não foi uma expressão de satisfação pelo
término de seus sofrimentos haver então chegado; não foi o último suspiro de
uma vida que se findava. Não, antes foi a declaração da parte do divino
Redentor de que tudo pelo qual ele viera do céu à terra para fazer, estava
agora feito; que tudo que era necessário para revelar o completo caráter de
Deus agora se tinha concluído; que tudo que era requerido pela lei antes que os
pecadores pudessem ser salvos tinha agora sido realizado: que o preço da nossa
escravidão foi pago para a nossa redenção.
“Está consumado”. O grande propósito
divino na história do homem era agora efetuado — efetuado de jure tanto quanto
ainda o será de facto. Desde o princípio, a intenção de Deus foi sempre uma e
indivisível. Foi declarada aos homens de várias maneiras: em símbolo e tipo,
por misteriosos sinais e por claras sugestões, mediante predição messiânica e
mediante declaração didática. Esse seu propósito pode ser assim resumido:
mostrar sua graça e engrandecer seu Filho criando filhos a sua própria imagem e
glória. E na cruz o fundamento que foi posto era para que isso se tornasse
possível e real.
“Está consumado”. O que está consumado? A
resposta a tal questão é uma resposta mui abundante de significado, ainda que
vários excelentes expositores procurem limitar o escopo de tais palavras e
confiná-las estritamente a uma única aplicação. É-nos dito que foram consumadas
as profecias que diziam respeito aos sofrimentos do Salvador, e que ele se
referia apenas a isso. Admite-se de pronto que a referência imediata era às
predições messiânicas, todavia, pensamos que há razões boas e suficientes para
não confinar as palavras de nosso Senhor a elas. Sim, para nós parece certo que
Cristo se referia especialmente à sua obra sacrificial, pois toda escritura
acerca de seu sofrimento e vergonha não estava cumprida. Ainda restava entregar
seu espírito nas mãos do Pai (Sl 31.5); ainda restava o “traspassar” com a
lança (Zc 12.10: e repare que a palavra utilizada para o traspassar de suas
mãos e pés — o ato de crucificação — no Sl 22.16 é diferente [101]); ainda restava serem seus ossos
preservados sem quebra (Sl 34.20), e o enterro no sepulcro do homem rico (Is
53.9).
“Está consumado”. O que estava consumado?
Respondemos, sua obra sacrificial. É verdade que havia ainda o ato da própria
morte, que era necessária para fazer a expiação. Porém, como se dá
freqüentemente no Evangelho de João — onde se encontra nosso texto — (cf. Jo
12.23,31; 13.31; 16.5; 17.4), o Senhor fala aqui antecipadamente da conclusão
de sua obra. Além disso, deve ser lembrado que as três horas de trevas já
haviam passado, o terrível cálice já havia sido sorvido até à última gota, seu
precioso sangue já tinha sido vertido, a ira divina derramada já havia sido
suportada; e esses são os principais elementos para se fazer a propiciação. A
obra sacrificial do Salvador, então, estava completada, com exceção apenas do
ato de morte que se seguiu imediatamente. Mas, como veremos, a consumação
daquela obra pôs fim a várias coisas, e a elas voltaremos a nossa atenção.
“Está consumado”
1. Aqui vemos efetuado o cumprimento de
todas as profecias que foram escritas sobre ele antes que viesse a morrer.
Esse é o pensamento imediato do contexto:
“Quando Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado” (Jo 19.30). Séculos antes,
os profetas de Deus tinham descrito passo a passo a humilhação e o sofrimento
por que o Salvador vindouro deveria passar. Uma por uma das profecias haviam
sido cumpridas, maravilhosamente cumpridas, cumpridas ao pé da letra. Havia
profecia que declarava que ele deveria vir da “semente da mulher” (Gn 3.15):
então, ele veio “nascido de mulher” (Gl 4.4). Havia profecia que anunciava que
sua mãe seria uma “virgem” (Is 7.14): então foi ela literalmente cumprida (Mt
1.18). Havia profecia que revelava que ele deveria ser da semente de Abraão (Gn
22.18): então, observe seu cumprimento (Mt 1.1). Havia profecia que fazia saber
que ele deveria ser da linhagem de Davi (2Sm 7.12,13): então tal se deu em
realidade (Rm 1.3). Havia profecia que dizia que ele receberia seu nome antes
de nascer (Is 49.1): então assim se sucedeu (Lc 1.30,31). Havia profecia que
previa que ele deveria nascer em Belém de Judá (Mq 5.2): observe então como
essa aldeia mesma foi de fato sua terra natal. Havia profecia que alertava de
antemão que seu nascimento acarretaria desgosto para outros (Jr 31.15): então,
contemple seu trágico cumprimento (Mt 2.16-18). Havia profecia que mostrava com
antecedência que o Messias deveria aparecer antes que o cetro da ascendência de
Judá sobre as demais tribos tivesse dela partido (Gn 49.10); então assim foi,
pois ainda que as dez tribos estivessem cativas, Judá ainda estava na terra na
época de seu advento. Havia profecia que aludia à fuga para o Egito e ao
subseqüente retorno para a Palestina (Os 11.1 e cf. Is 49.3,6): então, assim
aconteceu (Mt 2.14,15).
Havia profecia que fazia menção de um que
viria antes de Cristo para aprontar seu caminho (Ml 3.1): então, veja seu
cumprimento na pessoa de João Batista. Havia profecia que dava a conhecer que
no aparecimento do Messias “os olhos dos cegos serão abertos, e os ouvidos dos
surdos se abrirão. Então os coxos saltarão como cervos, e a língua dos mudos
cantará” (Is 35.5,6): então, leia de uma ponta a outra os quatro evangelhos e
veja de quão bendita maneira isso se provou verdadeiro. Havia profecia que
falava dele como “pobre e necessitado” (Sl 40.17 — vide início do salmo):
então, contemple-o não tendo onde reclinar a cabeça. Havia profecia que sugeria
que ele falaria em “parábolas” (Sl 78.2): então tal foi amiúde seu método de
ensino. Havia profecia que o representava acalmando a tempestade (Sl 107.29):
então, isso foi exatamente o que ele fez.[102]
Havia profecia que proclamava sua “entrada triunfal” em Jerusalém (Zc 9.9):
então assim se sucedeu.
Havia profecia que anunciava que sua
pessoa deveria ser desprezada (Is 53.3); que ele deveria ser rejeitado pelos
judeus (Is 8.14); que ele deveria ser aborrecido “sem causa” (Sl 69.4): então,
é triste dizê-lo, tal foi precisamente o caso. Havia profecia que pintava o
quadro inteiro de sua degradação e crucificação — então, foi ele vividamente
reproduzido. Houvera a traição por um amigo íntimo, a deserção por seus
queridos discípulos, o ser levado ao matadouro, o ser levado a julgamento, o
aparecimento de falsas testemunhas contra si, a recusa de sua parte de se
defender, a demonstração de sua inocência, a condenação injusta, a pena de
morte sentenciada sobre si, o traspassamento literal de suas mãos e pés, o ser
contado entre os transgressores, a zombaria da multidão, o lançar sortes sobre
suas vestes — tudo predito séculos antes, e tudo cumprido ao pé da letra. A
última profecia de todas que ainda restava antes de encomendar seu espírito às
mãos do Pai tinha agora sido cumprida. Ele clamou, “Tenho sede”, e após o
oferecimento de vinagre e fel tudo estava agora “concluído”; e, quando o Senhor
Jesus reviu o inteiro escopo da palavra profética e viu sua completa
realização, ele bradou, “Está consumado”!
Somente nos resta assinalar que, enquanto
houve um grupo todo de profecias que tinha de se dar no primeiro advento do
Salvador, assim também há um outro que tem de acontecer em seu segundo advento
— o último, tão definido, pessoal e completo em seu escopo quanto o primeiro.
Assim como vemos o real cumprimento daquelas que tinham de ocorrer em sua
primeira vinda à terra, também podemos aguardar com absoluta confiança e
segurança o cumprimento daquelas que terão lugar em sua segunda vinda. E, como
vimos que o primeiro grupo de profecias foi cumprido literal, real e
pessoalmente [103],
também devemos esperar que o último o seja. Admitir o cumprimento literal do
primeiro, e então procurar espiritualizar e simbolizar o último, é não apenas
grosseiramente inconsistente e ilógico, mas altamente pernicioso para nós e
profundamente desonroso a Deus e à sua palavra.
“Está consumado”
2. Vemos aqui o término de seus
sofrimentos.
E qual língua ou pena pode descrever os
sofrimentos do Salvador? Ó, que angústia inexprimível, física, mental e
espiritual que ele suportou! Apropriadamente foi ele designado “o Homem de
Dores”. Sofrimentos nas mãos dos homens, nas mãos de Satanás e nas mãos de
Deus. Dor infligida tanto pelos inimigos quanto pelos amigos. Desde o início
ele caminhou entre as sombras que a cruz lançava de través sobre seus passos.
Ouça seu lamento: “Estou aflito e prestes a morrer desde a minha mocidade” (Sl
88.15). Que luz isso lança sobre seus primeiros anos! Quem pode dizer quanto
está contido nessas palavras? Para nós, um véu impenetrável está lançado sobre
o futuro; nenhum de nós sabe o que um dia pode causar. Mas o Salvador conhecia
o fim desde o começo!
Alguém apenas precisa ler os evangelhos
para saber como a terrível cruz esteve sempre perante ele.
Nas bodas de Cana, onde tudo era alegria e
divertimento, ele faz solene referência à sua “hora” que ainda não viera.[104]
Quando Nicodemos o entrevistou à noite, o Salvador aludiu ao levantamento do
Filho do homem.[105]
Quando Tiago e João vieram lhe pedir dois lugares de honra em seu reino
vindouro, ele fez menção ao “cálice” que ele tinha de tomar e ao “batismo” com
que deveria ele ser batizado.[106]
Quando Pedro confessou que ele era o
Cristo, o Filho do Deus vivo, ele voltou-se para os seus discípulos e começou a
lhes mostrar “que convinha ir a Jerusalém, e padecer muito dos anciãos, e dos
principais dos sacerdotes, e dos escribas, e ser morto, e ressuscitar ao
terceiro dia” (Mt 16.21). Quando Moisés e Elias ficaram diante dele no monte da
transfiguração, foi para falar “da sua morte, a qual havia de cumprir-se em Jerusalém”.
Se é verdade que somos bem incapazes de
avaliar os sofrimentos de Cristo devido à antecipação da cruz, menos ainda
podemos sondar a pavorosa realidade da própria. Os sofrimentos físicos foram
excruciantes, mas mesmo isso foi como nada se comparado com sua angústia de
alma. Para uma consideração de tais sofrimentos já dedicamos vários parágrafos
nos capítulos anteriores, todavia não nos desculpamos em nada em retornar a
eles novamente. Não é demasiado de nossa parte poder contemplar com freqüência
o que o Salvador suportou a fim de assegurar a salvação para nós. Quanto mais
estivermos familiarizados com seus sofrimentos, e quanto mais amiúde meditarmos
neles, mais caloroso será nosso amor e mais profunda a nossa gratidão.
Finalmente as últimas horas chegaram.
Tinha havido a terrível experiência no Getsêmane seguida pelos comparecimentos
perante Caifás, perante Pilatos, perante Herodes e novamente perante Pilatos.
Tinha havido o açoitamento e o escárnio por parte dos soldados brutais; a
jornada ao Calvário; a fixação de suas mãos e pés por pregos ao cruel madeiro.
Tinha havido a injúria dos sacerdotes, do povo e dos dois ladrões com ele
crucificados. Tinha havido a total indiferença de uma turba vulgar, dentre a
qual ninguém houve que “tivesse compaixão” e que dissesse uma palavra de consolo
(Sl 69.20). Tinha havido a apavorante escuridão que lhe ocultou a face do Pai,
que arrancou dele o amargo clamor, “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” Tinha havido os lábios ressecados que tiraram dele a exclamação,
“Tenho sede”. Tinha havido o horrendo conflito com o poder das trevas enquanto
a serpente “feria” seu calcanhar. Bem podia o padecente perguntar, “Não vos
comove isto a todos vós que passais pelo caminho? atendei, e vede, se há dor
como a minha dor, que veio sobre mim, com que me entristeceu o Senhor, no dia
do furor da sua ira” (Lm 1.12).
Mas agora o sofrimento está findo. Aquilo
a que sua santa alma recuava está acabado. O Senhor o tinha ferido; o homem e o
diabo tinham feito o pior que podiam fazer. O cálice foi completamente bebido.
A terrível tempestade da ira de Deus tinha acabado de passar. As trevas estão
terminadas. A espada da justiça divina está embainhada. O salário do pecado
tinha sido pago. As profecias acerca de seu sofrimento estavam todas cumpridas.
A cruz tinha sido “suportada”. A santidade divina tinha sido plenamente
satisfeita. Com um brado de triunfo — um forte brado, um brado que reverberou
de uma extremidade a outra do universo — o Salvador exclama, “Está consumado”.
A ignomínia e a vergonha, o sofrimento e a agonia são passado. Nunca mais ele
experimentará dor. Nunca mais ele suportará a contradição de pecadores contra
si mesmo. Nunca mais estará ele nas mãos de Satanás. Nunca mais a luz do
semblante de Deus ficará ocultada dele. Bendito seja Deus, tudo está terminado!
A cabeça que antes estava
coroada de espinhos, está agora coroada de glória;
Um diadema real adorna a testa
do poderoso Conquistador.
O mais
alto lugar do Céu é Seu, é Seu por direito,
O Rei dos reis e Senhor dos
senhores, e a eterna Luz do Céu.
O gozo de todos os que habitam
encima, o Gozo de todos embaixo,
Àqueles a que ele manifesta
seu amor, e concede que conheçam seu nome.[107]
“Está consumado”
3. Vemos aqui que o objetivo da Encarnação
é alcançado.
A Escritura indica que há uma obra especial
peculiar a cada uma das pessoas divinas, ainda que, como as pessoas mesmas, não
é sempre fácil distinguir entre suas respectivas obras. Deus Pai está
especialmente envolvido no governo do mundo. Ele governa sobre todas as obras
de suas mãos. Deus Filho está especialmente envolvido na obra redentora: ele
foi quem veio aqui para morrer pelos pecadores. Deus Espírito está
especialmente envolvido com as escrituras: ele foi quem moveu os santos homens
de outrora para falarem as mensagens de Deus,[108]
assim como é quem agora dá iluminação espiritual e entendimento,[109]
e guia na verdade.[110]
Mas é com a obra de Deus Filho que estamos aqui particularmente interessados.
Antes que o Senhor Jesus viesse a essa
terra uma obra definida foi confiada a ele. No princípio do livro isso foi
escrito por ele, e ele veio a fazer a vontade registrada de Deus.[111]
Mesmo quando garoto de doze anos, os
“negócios” do Pai estavam diante de seu coração e ocupavam a sua atenção. Outra
vez, em João 5.36, encontramo-lo dizendo: “Mas eu tenho maior testemunho do que
o de João; porque as obras que o Pai me deu para realizar, as mesmas obras que
eu faço”. E, na última noite antes de sua morte, naquela maravilhosa oração
sacerdotal, descobrimo-lo falando: “Eu glorifiquei-te na terra, tendo consumado
a obra que me deste a fazer” (Jo 17.4).
Em seu livro sobre os sete ditos de Cristo
na cruz, o Dr. Anderson-Berry lança mão de uma ilustração da história a qual,
por sua contundente antítese, revela o sentido e a glória da obra completa de
Cristo. Isabel, Rainha da Inglaterra, o ídolo da sociedade e a líder da alta
sociedade européia, quando em seu leito de morte, voltou-se para a sua dama de
companhia e disse: “Ó, meu Deus! Está acabado. Chego ao fim disso — o fim, o
fim. Ter somente uma vida e acabado com ela! Ter vivido, e amado, e triunfado;
e agora saber que está terminado. Pode-se desafiar tudo o mais, menos isso”. E,
enquanto a ouvinte assistia a isso sentada, poucos momentos depois, a face cujo
sorriso mais leve trouxera seus cortesãos aos seus pés, tornava-se numa máscara
de argila sem vida, e retribuía a ansiosa contemplação de sua serva com nada
mais do que um fixo olhar vazio. Tal foi o fim de alguém cuja meteórica
carreira fora invejada por metade do mundo. Não podia ser dito que ela “consumara”
alguma coisa, pois consigo tudo foi “vaidade e aflição de espírito”. Quão
diferente foi o fim do Salvador — “Eu glorifiquei-te na terra, tendo consumado
a obra que me deste a fazer”.
A missão na qual Deus enviou seu Filho ao
mundo estava agora acabada. Na realidade, não foi terminada até que desse seu
último suspiro, mas a morte viria em instantes e, antecipando-se a isso, ele
brada, “Está consumado”. A difícil obra está feita. A tarefa divinamente dada a
ele está executada. Uma obra mais digna de honra e mais importante do que
qualquer outra jamais confiada ao homem ou aos anjos estava completada. Aquilo
por que deixara a glória celeste, aquilo pelo qual ele tomara sobre si a forma
de servo, aquilo pelo qual ele havia permanecido na terra por trinta e três
anos para fazer, estava agora consumado. Nada mais tinha para ser adicionado. A
meta da Encarnação é atingida. Com que jubiloso triunfo ele aqui deve ter visto
a árdua e custosa obra que lhe foi entregue agora aperfeiçoada!
“Está consumado”. A missão na qual Deus
enviara seu Filho ao mundo estava acabada. Aquilo que fora tencionado na
eternidade viera a suceder. O plano de Deus fora plenamente levado a cabo. É
verdade que o Salvador fora morto e crucificado “por mãos de iníquos”, todavia,
foi “entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus” (At 2.23, ARA).
É verdade que os reis da terra se levantaram, e os príncipes se ajuntaram
contra o Senhor, e contra o seu Cristo [112]; entretanto, não foi senão para fazer o
que a mão e o conselho de Deus “tinham anteriormente determinado que se havia
de fazer” (At 4.28). Por que ele é o Altíssimo, não se pode frustrar a secreta
vontade de Deus. Por que ele é supremo, o conselho de Deus deve ficar de pé.
Por que ele é o TodoPoderoso, o propósito de Deus não pode ser malogrado.
Repetidas vezes as escrituras insistem na irresistibilidade do desejo do Senhor
Deus. Por que sua verdade é agora tão geralmente posta em discussão,[113]
acrescentamos sete passagens que a afirmam:
Mas, se ele resolveu alguma
cousa, quem o pode dissuadir? O que ele deseja, isso fará (Jó 23.13, ARA).
Bem sei eu que tudo podes, e
nenhum dos teus pensamentos pode ser impedido (Jó 42.2).
Mas o nosso Deus está nos
céus; faz tudo o que lhe apraz (Sl 115.3). Não há sabedoria, nem inteligência,
nem conselho contra o Senhor (Pv 21.30).
Porque o Senhor dos Exércitos
o determinou; quem pois o invalidará? E a sua mão estendida está; quem pois a
fará voltar atrás? (Is 14.27).
Lembrai-vos das coisas passadas desde a
antigüidade; que eu sou Deus, e não há outro Deus, não há outro semelhante a
mim; que anuncio o fim desde o princípio, e, desde a antigüidade as coisas que
ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha
vontade (Is 46. 9,10).
E todos os moradores da terra são reputados
em nada; e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os moradores
da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes? (Dn
4.35).
E, no brado triunfante do Salvador — “Está
consumado” — temos uma profecia e um penhor da execução definitiva do plano de
Deus de modo completo e irresistível. No fim dos tempos, quando tudo estiver
terminado, e o propósito divino for plenamente consumado, quando tudo que ele
predeterminou que devesse ser feito estiver cumprido, então será dito
novamente: “Está consumado”.
“Está consumado”
4. Vemos aqui a realização da expiação.
Falamos acima de Cristo alcançando a meta
da Encarnação, e da consumação de sua missão na terra; o que foram tal meta e
tal missão, a escritura claramente revela. O Filho do Homem veio aqui “para
buscar e salvar o que se havia perdido” (Lc 19.10). Cristo Jesus entrou no
mundo “para salvar os pecadores” (1Tm 1.15). Deus enviou seu Filho, nascido de
mulher, “para remir os que estavam debaixo da lei” (Gl 4.4). Ele foi
manifestado “para tirar os nossos pecados” (1Jo 3.5). E tudo isso envolvia a
cruz. O “perdido” que ele veio buscar só podia ser encontrado lá — no lugar de
morte e sob a condenação divina. Os pecadores podiam ser “salvos” somente por
alguém tomando seu lugar e levando suas iniqüidades. Aqueles que estavam sob a
lei apenas podiam ser “remidos” por um outro que cumprisse suas exigências e
sofresse sua maldição. Nossos pecados somente podiam ser “tirados” sendo
apagados pelo precioso sangue de Cristo. As demandas da justiça têm que ser
satisfeitas: as exigências da santidade divina têm que ser atendidas: o
terrível débito em que incorremos tem que ser pago. E na cruz isso foi feito;
feito por ninguém menos que o Filho de Deus; feito com perfeição; feito de uma
vez por todas.
“Está consumado”. Aquilo para o qual
tantos tipos apontavam, aquilo para o qual tanta coisa do tabernáculo e de seu
ritual prefigurava, aquilo do qual tantos dos profetas de Deus tinham falado,
estava agora realizado. Uma cobertura para o pecado e sua vergonha — tipificada
pelas túnicas de peles com as quais o Senhor Deus vestiu nossos primeiros pais [114] — foi agora fornecida. O mais excelente
sacrifício — tipificado pelo cordeiro de Abel [115] — fora agora oferecido. Um abrigo para a
tempestade do julgamento divino — tipificado pela arca de Noé [116] — era agora providenciado. O Filho
unigênito e mui amado — tipificado pelo oferecimento de Isaque por Abraão [117] — já havia sido posto sobre o altar. Uma
proteção contra o anjo vingador — tipificada pelo sangue derramado do cordeiro
pascal [118] — era agora suprida. Uma cura para a
mordida da serpente — tipificada pela serpente de bronze sobre a haste [119] — era agora aprontada para os pecadores.
A provisão de uma fonte que dá vida — tipificada pelo golpear de Moisés na
rocha [120] — era agora efetuada.
“Está consumado”.
A palavra grega aqui, teleo, é vertida de
várias formas no Novo Testamento. Uma olhada em algumas das diferentes
traduções em outras passagens nos habilitará a discernir a plenitude e a
finalidade do termo usado pelo Salvador. Em Mateus 11.1, teleo é traduzida como
segue: “E aconteceu que, acabando Jesus de dar instruções aos seus doze
discípulos, partiu dali”. Em Mateus 17.24, é assim traduzida: “Aproximaram-se
de Pedro os que cobravam as didracmas, e disseram: O vosso mestre não paga as
didracmas?” Em Lucas 2.39 é traduzida: “”E, quando acabaram de cumprir tudo
segundo a lei do Senhor, voltaram à Galiléia”. Em Lucas 18.31, temos: “E se
cumprirá no Filho do homem tudo o que pelos profetas foi escrito”. Ajuntando
tudo, aprendemos o escopo da sexta elocução do Salvador na cruz, “Está
consumado”. Ele clamou: está “posto um fim a”; está “pago”; está “realizado”;
está “acabado”. A que se pôs um fim? Aos nossos pecados e sua culpa. O que foi
pago? O preço de nossa redenção. O que foi realizado? Os mais extremos
requerimentos da lei. O que foi acabado? A obra que o Pai lhe dera a fazer. O
que foi findado? O fazer expiações.
Deus fornece ao menos quatro provas de que
Cristo terminou sim sua obra a qual lhe foi dada para fazer. Primeiro, no
rasgar do véu,[121]
que mostrava que o caminho para Deus estava agora aberto.
Segundo, no ressurgir de Cristo dentre os
mortos, que provou que Deus aceitara seu sacrifício.
Terceiro, na exaltação de Cristo a sua
própria destra, [122]
o que demonstrou o valor da sua obra e o deleite do Pai em sua pessoa. Quarto,
no envio à terra do Espírito Santo para aplicar as virtudes e benefícios da
morte expiatória de Cristo.[123]
“Está consumado”.
O que estava consumado? A obra da
expiação. Qual o seu valor para nós? Este: ao pecador, é uma mensagem de boas
novas. Tudo que um santo Deus requer foi feito. Nada é deixado para o pecador
acrescentar. Obra nenhuma de nós é exigida como preço de nossa salvação. Tudo
que é necessário ao pecador é descansar agora pela fé sobre o que Cristo fez:
“O dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm
6.23). Para o crente, o conhecimento de que a obra expiatória de Cristo está
acabada traz um doce alívio contra todos os defeitos e imperfeições de seus
serviços. Há muito de pecado e vaidade no melhor mesmo de nossos esforços, mas
o grande consolo é que estamos “perfeitos” em Cristo (Cl 2.10)! Cristo e sua
obra acabada é o fundamento de todas as nossas esperanças.
Sobre uma Vida que não vivi,
Sobre uma Morte que não morri,
Sobre a morte de um outro,
sobre a vida de um outro
Eu lanço minh’alma eternamente
Com ousadia ficarei de pé
naquele grande dia,
Pois quem pode lançar sobre
mim alguma acusação?
Completamente
absolvido por Cristo estou,
Da tremenda maldição do pecado
e da culpa.[124]
“Está
consumado”
5. Vemos aqui o fim de nossos pecados.
Os pecados do crente — todos os seus —
foram transferidos ao Salvador. Como diz a escritura: “O Senhor fez cair sobre
ele a iniqüidade de nós todos” (Is 53.6). Se Deus pois lançou minhas
iniqüidades sobre Cristo, não mais estão elas sobre mim. Há pecado em mim, pois
a velha natureza adâmica permanece no crente até a morte ou até o retorno de
Cristo, caso ele venha antes que eu morra, porém, não há mais pecado algum
sobre mim. Tal distinção entre pecado EM e pecado SOBRE é uma distinção vital,
e deve haver pouca dificuldade em sua apreensão. Se eu dissesse que o juiz deu
a sentença sobre um criminoso, e que esse está agora sob sentença de morte,
todos entenderiam o que eu quis dizer. Da mesma forma, todos fora de Cristo tem
a sentença da condenação divina que repousa sobre si. Porém, quando um pecador
crê no Senhor, recebe-o como seu Senhor e Mestre, ele não mais está “sob
condenação” — o pecado não mais está sobre si, ou seja, a culpa, a condenação,
a pena do pecado, não mais está sobre ele. E por quê? Porque Cristo levou
nossos pecados em seu próprio corpo sobre o madeiro (1Pd 2.24). A culpa, a
condenação e a pena de nossos pecados foram transferidas ao nosso substituto.
Em conseqüência, porque meus pecados foram transferidos a Cristo, eles não mais
estão sobre mim.
Essa preciosa verdade foi contundentemente
ilustrada nos tempos do Antigo Testamento em conexão com o Dia Anual da
Expiação em Israel. Naquele dia, Arão, o sumo-sacerdote (um tipo de Cristo),
dava satisfação a Deus pelos pecados que Israel cometera durante o ano
anterior. A maneira como isso era feito está descrita em Levítico 16. Dois
bodes eram tomados e apresentados diante de Deus à porta do tabernáculo: isso
era antes que qualquer coisa fosse feita com eles: isso representava Cristo
apresentando-se a Deus, oferecendo para entrar neste mundo, e ser o Salvador dos
pecadores. Um dos bodes era então escolhido e morto, e seu sangue era levado
para dentro do tabernáculo, no interior do véu, no Santo dos Santos e, ali, era
espargido perante e sobre o propiciatório — prefigurando a Cristo oferecendo-se
como um sacrifício a Deus, para satisfazer às exigências de sua justiça e aos
requerimentos de sua santidade.
Lemos então que Arão saía do tabernáculo e
punha ambas as mãos sobre a cabeça do segundo bode (vivo) — significando um ato
de identificação pelo qual ele, o representante de toda a nação, identificava o
povo com o animal, reconhecendo que seu destino era o que seus pecados
mereciam, e que, hoje, corresponde às mãos da fé, segurando Cristo e
identificando a nós mesmos consigo em sua morte. Tendo posto suas mãos na
cabeça do bode vivo, Arão agora confessava sobre ele “todas as iniqüidades dos
filhos de Israel, e todas as suas transgressões, segundo todos os seus pecados,
e os porá sobre a cabeça do bode” (Lv 16.21). Desse modo, os pecados de Israel
eram transferidos ao seu substituto. Finalmente se nos diz: “Assim aquele bode
levará sobre si todas as iniqüidades deles à terra solitária; e enviará o bode
ao deserto” (Lv 16.22). O bode que carregava os pecados de Israel era
introduzido num ermo inabitado, e o povo de Deus não mais via, nem ele nem seus
pecados! Tipificando, isso era Cristo introduzindo nossos pecados em uma terra
desolada onde Deus não estava, e ali dando um fim a eles. A cruz de Cristo,
pois, é o túmulo de nossos pecados!
“Está consumado”
6. Aqui vemos o cumprimento das exigências
da lei.
“A lei é santa, e o mandamento santo,
justo e bom” (Rm 7.12). Como poderia ela ser menos que isso, já que o próprio
Jeová a tinha ideado e dado! A culpa não estava na lei, mas no homem que, sendo
depravado e pecador, não a podia guardar. Todavia, aquela lei tem que ser
guardada, e guardada por um homem, de modo que a lei pudesse ser honrada e
exaltada, e justificado aquele que a deu. Por conseguinte, lemos: “Porquanto o
que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando
o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na
carne; para que a justiça da lei se cumprisse em (não “por”) nós, que não
andamos segundo a carne, mas segundo o espírito” (Rm 8.3,4). A “enfermidade”
aqui é aquela do homem caído. O envio do Filho de Deus na semelhança da carne
do pecado (grego, corretamente traduzido pela versão Almeida Revista e
Corrigida) refere-se à Encarnação: como lemos em uma outra escritura, “Deus
enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que
estavam sob a lei” (Gl 4.4,5 ARA). Sim, o Salvador nasceu “sob a lei”, nasceu
sob ela para que pudesse guardá-la perfeitamente em pensamento, palavra e
obras. “Não cuideis que vim destruir a lei, ou os profetas: não vim abrogar,
mas cumprir” (Mt 5.17); essa foi sua pretensão.
Mas não apenas o Salvador guardou os
preceitos da lei, ele também sofreu sua pena e suportou sua maldição. Nós a
tínhamos quebrado e, tomando nosso lugar, ele deve receber sua justa sentença.
Tendo recebido sua pena e sofrido sua maldição, as exigências da lei são completamente
atendidas e a justiça é satisfeita. Por conseguinte, está escrito a respeito
dos crentes: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por
nós” (Gl 3.13). E outra vez: “Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo
aquele que crê” (Rm 10.4). E outra vez ainda: “Pois não estais debaixo da lei,
mas debaixo da graça” (Rm 6.14).
“Livres da lei, Ó feliz
condição!
Jesus abençoa e há remissão.
Amaldiçoados pela lei e mortos
pela queda,
A graça nos redimiu de uma vez
por todas.[125]
“Está consumado”
7. Aqui vemos a destruição do poder de
Satanás.
Veja-o pela fé. A cruz foi o presságio de
morte do poder do diabo. Às aparências humanas parecia o momento de seu maior
triunfo, todavia, na realidade foi a hora de sua derrota definitiva. Em virtude
da cruz (vide contexto) o Salvador declarou, “Agora é o juízo deste mundo;
agora será expulso o príncipe deste mundo” (Jo 12.31). É verdade que Satanás
não foi ainda acorrentado e lançado no abismo,[126]
entretanto, a sentença foi dada (ainda que não executada); seu fim é certo; e
seu poder já está quebrado no que diz respeito aos crentes.
Para o cristão, o diabo é um inimigo
vencido. Ele foi derrotado por Cristo na cruz — “para que pela morte
aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo” (Hb 2.14). Os
crentes já foram tirados “da potestade das trevas” e transportados para o reino
do Filho do amor de Deus (Cl 1.13). Satanás, então, deve ser tratado como um
inimigo derrotado. Ele não mais tem qualquer reivindicação legítima sobre nós.
Outrora éramos seus “cativos” por lei, mas Cristo nos livrou. Outrora andávamos
“segundo o príncipe das potestades do ar”;[127]
mas agora temos de seguir o exemplo que Cristo nos deixou. Outrora Satanás
“operava em nós”; mas agora Deus é quem opera em nós tanto o querer quanto o efetuar,
segundo sua boa vontade.[128]
Tudo o que temos de fazer é “resistir ao diabo”, e a promessa é que “ele fugirá
de vós” (Tg 4.7).
“Está consumado”. Aqui estava a resposta
triunfante à cólera do homem e à inimizade de Satanás. Ela conta a perfeita
obra que vai de encontro ao pecado no lugar do julgamento. Tudo estava
completado exatamente como Deus queria tê-lo, como os profetas haviam predito,
como o cerimonial do Antigo Testamento prefigurava, como a santidade divina
requeria, e como os pecadores necessitavam. Quão contundentemente apropriado é
que esse sexto brado do Salvador na cruz seja encontrado no evangelho de João —
o evangelho que mostra a glória da deidade de Cristo! Ele aqui não encomenda sua
obra à aprovação divina, mas sela-a com o seu próprio imprimatur, atestando-a como
completa, e dando-lhe a todo-suficiente sanção de sua própria aprovação. Nenhum
outro além do Filho de Deus diz “ESTÁ consumado” — quem pois ousa duvidar ou
questionar?
“Está consumado”.
Leitor, você crê nisso? ou está tentando
adicionar algo de si mesmo à obra completa de Cristo para assegurar o favor de
Deus? Tudo o que você tem que fazer é aceitar o perdão que ele adquiriu. Deus
está satisfeito com a obra de Cristo, por que você não está? Pecador, no momento
em que você crer no testemunho de Deus sobre seu Filho amado, nesse momento
todo pecado que você cometeu é apagado, e você fica em posição aceitável em
Cristo! Ó, não gostaria você de possuir a certeza de que não há nada entre sua
alma e Deus? Não gostaria você de saber que todo pecado foi expiado e posto de
lado? Então, creia no que a palavra de Deus acerca da morte de Cristo. Não
descanse em seus sentimentos e experiências, mas na palavra escrita. Há apenas
um caminho para se encontrar paz, e isso é mediante a fé no sangue derramado do
Cordeiro de Deus.
“Está consumado”. Você realmente crê
nisso? Ou está se esforçando para acrescentar algo seu mesmo a ele e assim
merecer o favor divino? Há alguns anos atrás, um fazendeiro cristão estava profundamente
preocupado com um carpinteiro não salvo. Ele procurou pôr diante de seu vizinho
o evangelho da graça de Deus, e explicar como que a obra completa de Cristo foi
suficiente para sua alma nela descansar. Porém, o carpinteiro persistia na
crença de que ele mesmo tem que fazer algo. Um dia, o fazendeiro pediu a esse
para lhe fazer um portão, e quando o portão estava pronto ele o transportou
para a sua carroça. Ele ordenou ao carpinteiro que o visitasse no dia seguinte
de manhã e visse o portão quando levantado no campo. Na hora marcada o
carpinteiro chegou e ficou surpreso ao descobrir o fazendeiro lá perto com um
afiado machado em sua mão. “O que você vai fazer?”, ele perguntou. “Vou fazer
alguns cortes e dar uns golpes em sua obra”, foi a resposta. “Mas não há necessidade
alguma disso”, respondeu o carpinteiro, “o portão está todo certo assim. Fiz
tudo que era necessário”. O fazendeiro não prestou atenção a isso mas, erguendo
seu machado, deu talhos e cortes no portão até ficar completamente inutilizado.
“Veja o que você fez!”, gritou o carpinteiro. “Você arruinou meu trabalho!”
“Sim”, disse o fazendeiro, “e isso é exatamente o que você está tentando fazer.
Você está procurando anular a obra
completa de Cristo com seus miseráveis acréscimos a ela!” Deus utilizou essa
lição com o vigoroso objeto para mostrar ao carpinteiro seu engano, e esse foi
levado a se lançar em fé sobre o que Cristo tem feito pelos pecadores. Leitor,
você quer fazer o mesmo?
7. A PALAVRA DE
CONTENTAMENTO
"E, clamando Jesus com
grande voz,
disse: Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito.
E,
havendo dito isto, expirou"
Lucas 23.46
“E, CLAMANDO JESUS com grande voz, disse:
Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. E, havendo dito isto, expirou"
(Lc 23.46). Essas palavras postas diante de nós foram o último ato do Salvador
antes de expirar. Foi um ato de contentamento, de fé, de confiança e amor. A
pessoa a quem ele confiou o precioso tesouro de seu espírito foi seu próprio
Pai. Pai é um título que traz encorajamento e segurança: um filho, desde que
seja querido, bem pode confiar qualquer preocupação nas mãos de um pai, em
especial um tal Filho nas mãos de um tal Pai. Aquilo que foi entregue nas mãos
do Pai foi o seu “espírito”, que estava preste a se separar do corpo.
A Escritura mostra o homem como sendo um
ser tricotômico: “espírito, e alma, e corpo” (1Ts 5.23). Há uma diferença entre
a alma e o espírito, ainda que não seja fácil afirmar onde não são eles
similares entre si. O espírito parece ser o mais elevado panorama de nosso ser
complexo. É isso que particularmente distingue o homem das bestas, e que o liga
a Deus. O espírito é aquilo que Deus forma dentro de nós (Zc 12.1); portanto, é
ele chamado o “Deus dos espíritos de toda a carne” (Nm 16.22). Na morte, o
espírito volta a Deus, que o deu (Ec 12.7).
O ato pelo qual o Salvador pôs seu
espírito nas mãos do Pai foi um ato de fé —“[eu] entrego”. Foi um bendito ato
com a intenção de ser um precedente para todo seu povo. O último ponto
observável é a maneira na qual Cristo executou seu ato: ele expressou tais
palavras “com grande voz”. Ele falou para que todos pudessem ouvir, e para que
seus inimigos, que o julgavam destituído e desamparado por Deus pudessem saber
que ele não mais o estava, antes, que ainda era amado por seu Pai, e podia pôr
seu espírito confiantemente em suas mãos.
“Pai, nas tuas mãos entrego o meu
espírito”. Foi a última coisa que o Salvador disse antes de expirar. Enquanto
pendurado na cruz, por sete vezes seus lábios moveram-se para falar. Sete é o
número da inteireza ou perfeição. No Calvário, então, como em todo lugar, as
perfeições do Bem-Aventurado foram mostradas. Sete é também o número de
descanso em uma obra encerrada: em seis dias Deus fez céu e terra e, no sétimo,
descansou, contemplando com satisfação aquilo sobre o que pronunciara ser
“muito bom”. Assim também aqui com Cristo: uma obra fora-lhe dada para fazer, e
tal obra estava agora feita. Exatamente como o sexto dia levou à conclusão a
obra de criação e reconstrução, assim a sexta declaração do Salvador foi “Está
consumado”. E, exatamente como o sétimo dia foi o dia de repouso e satisfação,
assim a sétima elocução do Salvador trá-lo ao lugar de descanso — as mãos do
Pai.
Por sete vezes o Salvador agonizante
falou. Três dessas elocuções diziam respeito aos homens: a um deu a promessa de
que deveria estar com ele naquele dia no Paraíso; a um outro confiou sua mãe; à
massa de expectadores fez menção de estar com sede. Três dessas elocuções foram
dirigidas a Deus: ao Pai ele orou por seus assassinos; a Deus ele expressou seu
triste lamento; e agora, nas mãos do Pai, ele entrega seu espírito. Ao ouvido
de Deus e dos homens, dos anjos e do diabo, ele bradara em triunfo: “Está
consumado”.
“Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”.
É digno de nota que esse brado final do
Salvador tenha sido pronunciado pelo espírito de profecia muitos séculos antes
da Encarnação. No salmo de número trinta e um ouvimos o Filho de Davi e o
Senhor dizendo, antecipadamente:
“Em ti, Senhor, confio; nunca
me deixes confundido; livra-me pela tua justiça. Inclina para mim os teus
ouvidos, livra-me depressa; sê a minha firme rocha, uma casa fortíssima que me
salve. Porque tu és a minha rocha e a minha fortaleza; pelo que, por amor do
teu nome, guia-me e encaminha-me. Tira-me da rede que para mim esconderam, pois
tu és a minha força. Nas tuas mãos encomendo o meu espírito; tu me remiste,
Senhor Deus da verdade” (vv. 1-5)!
Em conexão com cada uma das elocuções de
nosso Salvador na cruz uma profecia foi cumprida. Na primeira vez, ele clamou,
“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”, e isso cumpriu Isaías 53.12 —
“pelos transgressores intercedeu” [ARA]. Na segunda, ele prometeu ao ladrão:
“Hoje estarás comigo no Paraíso”, e isso foi um cumprimento da profecia do anjo
a José — “chamarás o seu nome Jesus; porque ele salvará o seu povo dos seus
pecados” (Mt 1.21). Na terceira, disse à sua mãe: “Mulher, eis aí o teu filho”,
e isso cumpriu a profecia de Simeão — “uma espada traspassará também a tua
própria alma” (Lc 2.35). Na quarta, ele havia perguntado: “Deus meu, Deus meu,
por que me desamparaste?” e tais palavras foram idênticas àquelas do Salmo
22.1. Na quinta, ele exclamou: “Tenho sede”, e isso foi um cumprimento do Salmo
69.21 — “na minha sede me deram a
beber vinagre”. Na sexta, ele bradou triunfantemente: “Está consumado”, e essas
são quase as mesmas palavras que servem de conclusão àquele maravilhoso salmo
vinte e dois: “ele o fez”, ou, como se poderia muito bem verter do hebraico:
“ele consumou”, com o contexto mostrando que ele tinha
feito, a saber, a obra de expiação. Por fim, ele orou: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, e, como mostramos de antemão, ele tão-somente estava citando o que dele fora escrito de antemão no Salmo 31. Ó, as maravilhas da cruz! Nunca chegaremos ao fim delas.
feito, a saber, a obra de expiação. Por fim, ele orou: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, e, como mostramos de antemão, ele tão-somente estava citando o que dele fora escrito de antemão no Salmo 31. Ó, as maravilhas da cruz! Nunca chegaremos ao fim delas.
“Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”
1. Vemos aqui o Salvador outra vez de
volta à comunhão com o Pai.
Isso é sobremaneira precioso. Por um
instante aquela comunhão foi quebrada — quebrada exteriormente — quando a luz
da santa face de Deus foi ocultada dAquele que levava nossos pecados, mas agora
as trevas haviam passado e eram findas para sempre. Até à cruz tinha havido
comunhão perfeita e ininterrupta entre o Pai e o Filho. É extraordinariamente
belo observar como o terrível “Cálice” mesmo fora aceito das mãos do Pai:
“Não beberei eu o cálice que o Pai me
deu?” (Jo 18.11). Na cruz, no início, o Senhor Jesus ainda é encontrado em
comunhão com o Pai, pois senão não teria clamado, “Pai, perdoa-lhes”! A sua
primeira declaração na cruz, então, foi “Pai, perdoa-lhes”, e agora sua última
palavra é: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Porém, entre aquelas
elocuções ele tinha ficado ali pendurado por seis horas: três delas passadas em
sofrimento nas mãos do homem e de Satanás; as três outras, na mão de Deus,
quando a espada da justiça divina foi “despertada” para ferir o Companheiro de
Jeová [129]. Durante aquelas três últimas horas, Deus
se tinha retirado do Salvador, o que evoca aquele terrível clamor: “Deus meu,
Deus meu, por que me desamparaste?” Mas agora está tudo feito. O cálice é
bebido até à última gota: a tempestade da ira se tinha passado: as trevas são
idas, e o Salvador é visto mais uma vez em comunhão com o Pai — comunhão nunca
mais quebrada.
“Pai”. Quão amiúde essa palavra estava nos
lábios do Salvador! A primeira vez em que foi registrada: “Não sabeis que me
convém tratar dos negócios de meu Pai?” No que foi provavelmente seu primeiro
discurso formal — o “sermão da montanha” — ele fala do “Pai” dezessete vezes.
Quando em seu discurso final aos discípulos, o “discurso pascal” encontrado em
João 14-16, a palavra “Pai” é achada não menos do que quarenta e cinco vezes!
No capítulo seguinte, João 17, que contém o que é conhecido como a grande oração
sacerdotal de Cristo, ele fala ao e do Pai por mais seis vezes. E agora, pela
última vez antes de renunciar à própria vida, diz novamente: “Pai, nas tuas
mãos entrego o meu
espírito”.
espírito”.
E quão abençoado é que seu Pai seja nosso
Pai! Nosso porque seu. Quão maravilhoso isso é! Quão inefavelmente precioso que
eu possa erguer meus olhos ao grande Deus vivente e falar, “Pai”, meu Pai! Que
conforto está contido nesse título! Que segurança é comunicada! Deus é meu Pai,
então ele me ama, ama-me como ao próprio Cristo (Jo 17.23)! Deus é meu Pai e me
ama, então ele se importa comigo. Deus é meu Pai e cuida de mim, então suprirá
todas as minhas necessidades (Fp 4.19). Deus é meu Pai, então ele fará com que
nenhum mal aconteça a mim, sim, que todas as coisas serão feitas para
trabalharem juntos para o meu bem [130]. Ó, que seus filhos adentrem mais
profunda e praticamente na bênção de tal relacionamento, e então, alegremente
exclamem com o apóstolo: “Vede quão grande caridade nos tem concedido o Pai:
que fôssemos chamados filhos de Deus” (1Jo 3.1)!
“Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”
2. Vemos aqui um calculado contraste.
Por mais de doze horas Cristo estivera nas
mãos dos homens. Disso falara aos seus discípulos quando os avisou de antemão
que “o Filho do homem será entregue nas mãos dos homens:e matá-lo-ão (Mt
17.22,23). Disso fizera menção no meio da terrível gravidade do Getsêmane:
“Então chegou junto dos seus discípulos, e disse-lhes: Dormi agora, e repousai;
eis que é chegada a hora, e o Filho do homem será entregue nas mãos dos
pecadores” (Mt 26.45). A isso os anjos fizeram referência na manhã da
ressurreição, dizendo às mulheres: “Não está aqui, mas ressuscitou. Lembrai-vos
como vos falou, estando ainda na Galiléia, dizendo: Convém que o Filho do homem
seja entregue nas mãos de homens pecadores, e seja crucificado, e ao terceiro
dia ressuscite” (Lc 24.6,7). Isso recebeu seu cumprimento quando o Senhor Jesus
se entregou àqueles que vieram prendê-lo no Jardim. Como vimos em um capítulo
anterior, Cristo podia facilmente ter evitado a prisão. Tudo que tinha que
fazer era deixar os oficiais dos sacerdotes prostrados no chão, e ir embora
tranqüilamente. Mas ele não agiu assim. A hora marcada havia chegado. O tempo
em que ele submeter-se-ia para ser levado como um cordeiro ao matadouro
chegara. E ele entregou-se nas “mãos dos pecadores”. Como eles o trataram é bem
sabido; eles se aproveitaram completamente da oportunidade. Eles deram plena
vazão ao ódio do coração carnal por Deus. Com “mãos ímpias” (At 2.23, KJV) o
crucificaram. Mas agora tudo está acabado. O homem fizera o seu pior. A cruz
fora suportada; a obra designada é terminada.
Voluntariamente tinha o Salvador se
entregado às mãos dos pecadores, e agora, voluntariamente, ele entrega seu
espírito nas mãos do Pai. Que bendito contraste! Nunca mais ele estará de novo
nas “mãos dos homens”. Nunca mais estará ele à mercê do ímpio. Nunca mais
sofrerá vergonha. Nas mãos do Pai ele se entrega, e o Pai agora tomará conta de
seus interesses. Não precisamos nos deter em detalhes na bendita conseqüência.
Três dias depois o Pai o ressuscitava dos mortos. Quarenta dias depois disso, o
Pai o exaltava acima de todo o principado, e poder, e de todo o nome que se
nomeia, e o pôs à sua própria direita nos céus [131]. E lá agora ele se assenta no trono do
Pai (Ap 3.21), esperando até que seus inimigos sejam feitos escabelo de seus
pés [132]. Por um dia, ainda que demorado, as
posições serão invertidas. O Pai enviará aquele a quem o mundo rejeitou: ele o
fará outra vez, mas em poder e glória: para governar e reinar sobre toda a
terra com vara de ferro [133]. Então a situação será inversa. Quando
aqui esteve anteriormente os homens se atreveram a acusá-lo publicamente, mas
então ele assentar-se-á para julgá-los. Outrora esteve nas mãos deles, então
eles estarão nas suas. Outrora gritaram: “Tira[-o] [134]”, então ele dirá: “Apartai-vos de mim [135]”.
E, no meio tempo, ele está nas mãos do Pai, sentado em seu trono, esperando seu
deleite!
“Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito.
E, havendo dito
isto, expirou.”
3. Vemos aqui a perfeita entrega de Cristo a Deus.
Quão abençoadamente ele provou isso em toda a sua caminhada!
Quando sua mãe o procurou em Jerusalém quando era um menino de doze anos, ele
disse: “Não sabeis que me convém tratar dos negócios de meu Pai?” Quando esteve
faminto no deserto após um jejum de quarenta dias e o diabo o instou a fazer
pão das pedras, ele respondeu dizendo que vivia de toda palavra de Deus [136]. Quando as poderosas obras que ele tinha
feito e a mensagem que tinha entregado não conseguiram comover seus ouvintes,
ele se submeteu àquele que o enviara, dizendo: “Graças te dou, ó Pai, Senhor do
céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as
revelaste aos pequeninos” (Mt 11.25). Quando as irmãs de Lázaro mandaram
informar ao Salvador da enfermidade de seu irmão, em vez de apressadamente ir a
Betânia, ele ficou ainda dois dias no lugar onde estava, dizendo: “Esta enfermidade
não é para morte, mas para glória de Deus”.[137]
Não era a afeição natural que o movia a agir, mas a glória de
Deus! Sua comida era fazer a vontade daquele que o enviou.[138]
Em tudo ele se submetia ao Pai. Veja-o de manhã, “levantando-se de manhã muito
cedo” (Mc 1.35), a fim de poder estar na presença do Pai. Veja-o antecipando-se
a toda grande crise e se preparando para ela derramando seu coração em
súplicas. Veja-o passando mesmo a última hora antes de sua prisão com sua face
perante Deus. Quão adequadamente podia ele dizer: “Tomai sobre vós o meu jugo,
e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração”.[139]
E da mesma forma que viveu, morreu — entregando-se nas mãos do Pai. Esse foi o
último ato do Salvador agonizante. E quão extraordinariamente belo. Quão
totalmente de conformidade com toda a sua vida! Ela manifestava sua perfeita
confiança no Pai. Ela revelava a bendita intimidade que havia entre eles. Ela
mostrava sua absoluta dependência de Deus.
Verdadeiramente, em tudo ele nos deixou um exemplo. O
Salvador entregou seu espírito nas mãos de seu Pai na morte, porque ele tinha
estado nas mãos dele por toda a sua vida! Isso é verdade quanto a você, leitor
meu? Como pecador, você entregou seu espírito nas mãos divinas? Nesse caso,
está salvaguardado. Você pode dizer com o apóstolo: “Eu sei em quem tenho
crido, e estou certo de que é poderoso para guardar o meu depósito até aquele
dia” (2Tm 1.12)? E você, como cristão, rendeu-se plenamente a Deus? Você presta
atenção àquela palavra: “Rogo-vos pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que
apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que
é o vosso culto racional” (Rm 12.1)? [140]
Está vivendo para a glória dele que amou e se deu por você? Está caminhando em
dependência diária dele, sabendo que sem ele não pode fazer nada (Jo 15.5), mas
aprendendo que pode fazer todas as coisas por Cristo, que fortalece você (Fp
4.13)? Se sua vida inteira está entregue a Deus, e a morte o apanhar antes que
o Salvador retorne para receber seu povo para si mesmo, então será fácil e
natural para você dizer: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Balaão
disse: “A minha alma morra a morte dos justos” (Nm 23.10). Ah, mas para morrer
a morte dos justos, você tem de viver a vida dos justos, e essa consiste em
absoluta submissão e dependência de Deus.
“Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”
4. Vemos aqui a absoluta singularidade do
Salvador.
O Senhor Jesus morreu como nenhum outro
jamais morreu. Essa foi a sua afirmação: “Por isto o Pai me ama, porque dou a
minha vida para tornar a tomá-la. Ninguém ma tira de mim, mas eu de mim mesmo a
dou; tenho poder para a dar, e poder para tornar a tomá-la” (Jo 10.17,18). As
várias provas de que a vida de Cristo não foi tirada dele foram expostas diante
do leitor na Introdução deste livro. A mais convincente demonstração de todas
foi vista na entrega de seu espírito nas mãos do Pai. O Senhor Jesus mesmo
disse: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, mas o Espírito Santo, ao
descrever a verdadeira renúncia da sua vida, emprega três diferentes expressões
que dão a conhecer mui convincentemente o fato que nós estamos ora considerando,
e as várias palavras empregadas pelo Espírito são mais apropriadas aos
respectivos evangelhos em que são encontradas.
Lemos em Mateus 27.50: “E Jesus, clamando
outra vez com grande voz, rendeu o espírito”. Mas tal tradução não consegue
salientar a força própria do original: o sentido no grego é o de que ele
“despachou seu espírito”. Essa expressão é a mais apropriada em Mateus, que é o
evangelho do rei, apresentando nosso Senhor como “O Filho de Davi; o Rei dos
judeus”. Um tal termo é lindamente adequado ao evangelho real, pois o ato do
Senhor tem conotação de autoridade, como de um rei mandando embora um servo. A
palavra usada em Marcos — que apresenta nosso Senhor como o servo perfeito — é
a mesma de nosso texto — tomada de Lucas, o evangelho da perfeita humanidade de
Cristo — e significa, ele “soprou para fora seu espírito”. Foi sua passiva
tolerância da morte. Em João, que é o evangelho da glória divina de Cristo, uma
outra palavra é empregada pelo Espírito Santo: “Inclinando a cabeça, entregou o
espírito” (Jo 19.30), ou liberou, talvez fosse mais exato. Aqui, o Salvador não
“encomenda” seu espírito ao Pai como no evangelho de sua humanidade, mas, de
acordo com sua glória divina, como alguém que tem completo poder sobre ele,
“libera” seu espírito!
Duas coisas eram necessárias para se fazer
propiciação: primeiro, uma satisfação completa deve ser oferecida à santidade
de Deus ultrajada e à sua justiça ofendida, e isso, no caso de nosso
substituto, somente podia ser por ele sofrendo a ira divina derramada. E isso
tinha sido suportado. Agora ali restava apenas a segunda coisa, e essa era para
o Salvador provar o gosto da morte. “Aos homens está ordenado morrerem uma vez
vindo depois disso o juízo” (Hb 9.27). Com o pecador é, primeiro, a morte,
depois o julgamento; com o Salvador a ordem, naturalmente, foi invertida. Ele
suportou o juízo de Deus contra os nossos pecados e depois morreu.
O fim agora era chegado. Perfeito senhor
de si mesmo, não subjugado pela morte, ele brada com uma grande voz de vigor
não exaurido, e entrega seu espírito nas mãos do Pai, e nisso sua singularidade
foi manifestada. Ninguém mais jamais agiu ou morreu assim. Seu nascimento foi
singular. Sua vida foi singular. Sua morte foi singular. Ao “dar” a sua vida,
sua morte foi diferenciada de todas as outras mortes. Ele morreu por um ato de
sua própria volição! Quem, a não ser uma pessoa divina, poderia ter feito isso?
A um mero homem teria sido suicídio; mas, para ele, era uma prova de sua
perfeição e singularidade. Ele morreu como o Príncipe da Vida! [141]
“Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”
5. Vemos aqui o lugar de segurança eterna.
Repetidas vezes o Salvador falou de um
povo que lhe fora “dado” (Jo 6.37 etc.), e na hora de sua prisão ele disse:
“Dos que me deste nenhum deles perdi” (Jo 18.9). Então, não é deleitoso ver que
na hora da morte o bendito Salvador entrega-os agora à salvaguarda do Pai? Na
cruz, Cristo pendurado como o representante de seu povo e, por conseguinte,
vemos seu último ato como um ato representativo. Quando o Senhor Jesus entregou
seu espírito nas mãos de seu Pai, ele também apresentou nossos espíritos junto
com o seu, para a aceitação do Pai. Jesus Cristo nunca viveu nem morreu por si
próprio, mas pelos crentes: o que ele fez em seu último ato reportava-se a eles
tanto quanto a si mesmo. Devemos, pois, olhar Cristo aqui unindo juntamente
todas as almas dos eleitos, e fazendo uma oferta solene delas, com seu próprio
espírito, a Deus.
A mão do Pai é o lugar da segurança
eterna. Naquela mão o Salvador encomendou seu povo, e ali eles estão para
sempre seguros. Disse Cristo, referindo-se aos eleitos: “Meu Pai, que mas deu,
é maior do que todos; e ninguém pode arrebatá-las da mão de meu Pai” (Jo
10.29). Aqui então está o fundamento da confiança do crente. Aqui está a base
de nossa segurança. Assim como nada podia prejudicar Noé quando a mão de Jeová
havia trancado a porta da arca, também nada pode tocar o espírito do santo pego
pela mão de onipotência. Ninguém pode arrancá-los de lá. Fracos somos em nós
mesmos, porém “guardados pelo poder de Deus”, é a declaração segura da
escritura sagrada: “guardados pelo poder de Deus, mediante a fé, para salvação
preparada para revelar-se no último tempo” (1Pd 1.5, ARA). Os adeptos formais
que parecem correr bem por um tempo podem ficar fatigados e abandonar a
corrida. Aqueles que são movidos pela excitação carnal de um “encontro de
reavivamento” agüentam somente por um tempo, pois “não têm raiz em si mesmos”.[142]
Aqueles que confiam no poder de suas próprias vontades e resoluções, que abandonam
maus hábitos e prometem agir melhor, amiúde fracassam, e seu último estado é
pior que o primeiro.[143]
Muitos que são persuadidos pelos bem intencionados, mas ignorantes,
aconselhadores para “juntar-se à igreja” e “viverem a vida cristã” com
freqüência apostatam da verdade. Mas todo espírito que nasceu de novo está
eternamente a salvo na mão do Pai.
“Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”
6. Vemos aqui a bênção da comunhão com
Deus.
O que estamos aludindo particularmente
aqui é ao fato de que a comunhão com Deus pode ser desfrutada independentemente
do lugar ou das circunstâncias. O Salvador estava na cruz, rodeado por uma
multidão escarnecedora, seu corpo sofrendo intensa agonia, entretanto, ele
estava em comunhão com o Pai! Essa é uma das mais doces verdades destacadas
pelo nosso texto. É privilégio nosso gozar da comunhão com Deus em todo tempo,
independente de circunstâncias ou condições externas. Tal comunhão é por fé, e
a fé não é afetada pelas coisas da vista.[144]
Não importa quão desagradável seu
quinhão possa ser, leitor meu, é seu inefável privilégio desfrutar de comunhão com Deus. Tal como os três hebreus a desfrutaram com o Senhor no meio do forno de fogo ardente, como Daniel na cova dos leões, como Paulo e Silas no cárcere de Filipos, como o Salvador na cruz, assim também você, seja em que lugar for! A cabeça de Cristo estava circundada com uma coroa de espinhos em cima, mas embaixo estavam as mãos do Pai!
quinhão possa ser, leitor meu, é seu inefável privilégio desfrutar de comunhão com Deus. Tal como os três hebreus a desfrutaram com o Senhor no meio do forno de fogo ardente, como Daniel na cova dos leões, como Paulo e Silas no cárcere de Filipos, como o Salvador na cruz, assim também você, seja em que lugar for! A cabeça de Cristo estava circundada com uma coroa de espinhos em cima, mas embaixo estavam as mãos do Pai!
Não ensina nosso texto mui explicitamente
a bendita verdade e o bendito fato da comunhão com o Pai na hora da morte?
Então por que se apavorar, companheiro cristão? Se Davi, sob a dispensação do
Antigo Testamento, podia dizer: “Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da
morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo” (Sl 23.4), por que devem
os crentes agora temer, depois de Cristo haver arrancado o aguilhão da morte! [145]
A morte pode ser a “Rainha dos terrores” para o não salvo, mas para o cristão,
ela é simplesmente a porta que dá acesso à presença do Bem-Amado. As moções de
nossas almas na morte, tanto quanto na vida, voltam-se instintivamente para
Deus. “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” será nosso brado, caso
estejamos conscientes. Enquanto tabernaculamos aqui não temos descanso algum
senão no seio do Pai;[146]
e quando saímos daqui, nossa expectativa e nossos desejos ardentes são o de
estar com ele. Lançamos muitos olhares desejosos em direção ao céu, mas quando
a alma do salvo se aproxima da bifurcação dos caminhos, então ela se atira nos
braços de amor, da mesma forma que um rio após muitos volteios e curvas se
derrama no oceano. Nada além de Deus pode satisfazer aos nossos espíritos neste
mundo, e nada senão ele pode nos satisfazer quando formos embora daqui.
Contudo, leitor, apenas os crentes estão
garantidos e são encorajados a assim encomendar seus espíritos nas mãos de Deus
à hora da morte; quão triste é o estado de todos os incrédulos que estão à
morte. Seus espíritos, ainda, cairão nas mãos dele, mas será isso a miséria
deles, não o privilégio. Os tais acharão que é uma “horrenda coisa cair nas
mãos do Deus vivo” (Hb 10.31). Sim, porque, em vez de caírem nos braços de
amor, cairão nas mãos de justiça.
“Pai, nas tuas mãos
entrego o meu espírito”
7. Vemos aqui o verdadeiro refúgio do
coração.
Se a elocução final do Salvador expressa a
oração dos cristãos às portas da morte, ela mostra que grande valor eles
colocam em seus espíritos. O espírito interior é o tesouro precioso, e nossa
principal solicitude e nosso maior cuidado é vê-lo guardado em mãos seguras.
“Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. Tais palavras então podem ser tomadas
para expressar a atenção dada pelo crente à sua alma, para que ela possa estar segura,
o que sempre acontece com o corpo. O santo de Deus que se aproxima da morte exercita
poucos pensamentos acerca de seu corpo, onde ele será posto, ou como o
disporão dele; ele confia-o às mãos de seus amigos. Porém, como seu cuidado desde o começo é com sua alma, assim ele pensa então nela, e com seu último suspiro a entrega à custódia divina. Não é: “Senhor Jesus, receba meu corpo, cuide do meu pó”; mas: “Senhor Jesus, receba meu espírito” — Senhor, proteja a jóia quando o cofre estiver quebrado.
disporão dele; ele confia-o às mãos de seus amigos. Porém, como seu cuidado desde o começo é com sua alma, assim ele pensa então nela, e com seu último suspiro a entrega à custódia divina. Não é: “Senhor Jesus, receba meu corpo, cuide do meu pó”; mas: “Senhor Jesus, receba meu espírito” — Senhor, proteja a jóia quando o cofre estiver quebrado.
E agora uma breve palavra de apelo para
concluir. Meu amigo, você está em um mundo que é cheio de problemas. Você não é
capaz de cuidar de si mesmo em vida, muito menos o será na morte. A vida tem
muitas provações e tentações. Sua alma é ameaçada dos dois lados. Em toda
direção há perigos e armadilhas. O mundo, a carne e o diabo entraram em
combinação contra você. Aqui está então o farol de luz em meio às trevas. Aqui
está o porto de abrigo em todas as tempestades. Aqui está o bendito pálio que
protege de todos os dardos inflamados do maligno.[147]
Graças a Deus que há um refúgio para os vendavais da vida e para os terrores da
morte — a mão do Pai — o verdadeiro céu do coração.
UMA BREVE BIOGRAFIA
Arthur Walkington
Pink (1886-1952)
Evangelista e erudito bíblico nascido em
Nottingham, Inglaterra, A. W. Pink foi dedicado a Cristo por sua mãe antes de
nascer. Porém, quando jovem, afastou-se da fé de seus piedosos pais e aderiu à
Teosofia (o movimento Nova Era de sua época).
Entretanto, em 1908, passa por uma
contundente experiência de conversão ao Evangelho e, simultaneamente, sente-se
chamado para o ministério. Assim, em 1910, aos vinte e quatro anos de idade,
cruza o Atlântico para entrar no Instituto Bíblico Moody, em Chicago, mas sai
de lá após dois meses, para assumir uma igreja, a primeira de uma série de
esforços fracassados no ministério pastoral. Em 1916, casou-se com Vera E.
Russell.
Nos anos seguintes ao abandono do curso,
veio a adotar uma posição teológica ardente e estritamente calvinista, após
aplicar-se ao estudo do pensamento puritano. Logo estaria manejando uma
prolífica pena, tornando-se professor itinerante da Bíblia em 1919, devotando,
a partir de então, sua vida ao estudo e exposição do Livro Santo, que viria a
ler mais de cinqüenta vezes e num ritmo de até dez capítulos por dia (!). Em
1922, deu início a uma revista mensal com o título de Studies in Scriptures,
voltada à exposição das Escrituras e cujos artigos viriam a ser a fonte da
maioria de seus trabalhos, que circulou entre cristãos de língua inglesa
espalhados pelo mundo e que nunca chegou a atingir uma tiragem de mil
exemplares, e que circulou até à época de sua morte; foi, sem dúvida, seu maior
monumento. De 1925 a 1928, atuou na Austrália, pregando, escrevendo e
pastoreando duas congregações entre 1926 e 1928, quando retornou à Inglaterra.
No ano seguinte, retornava aos Estados Unidos para mais oito anos de pastoreios
mal-sucedidos no Colorado, em Kentucky e na Carolina do Sul. Para alguns, a
razão da fraca acolhida de seu ministério nesse campo deveu-se à personalidade
excêntrica (de fato, Pink não se encaixava em qualquer lugar).
Em 1934, retornou em definitivo à sua
pátria natal, fazendo residência na Ilha de Lewis (Escócia) em 1940, onde
permanece em isolamento praticamente até sua morte, sem nenhuma ligação formal
com qualquer denominação — posição que não deve ser defendida nem justificada.
A partir de então, seu serviço no Reino de Deus passou a ser escrever dúzias de
livros e mais de dois mil artigos, todavia, sem sucesso editorial.
Em sua época, Arthur Pink era praticamente
desconhecido e, certamente, não era apreciado. O estudo por conta própria da
Bíblia firmou-lhe a convicção de que muito do moderno evangelismo era
defeituoso. Fez frente à crescente aceitação do arminianismo mesmo em
tradicionais redutos calvinistas, como as igrejas batistas, levando adiante,
com zelo incansável, os princípios da então abandonada literatura reformada.
Para ele, o declínio espiritual da Grã-Bretanha era resultante de um
“evangelho” que nem feria (com convicção de pecado) nem curava (pela
regeneração).
Após o seu falecimento em 1952, porém, ele
veio a ter significativa influência. Tendo suas obras republicadas por The
Banner of Truth Trust, veio a alcançar um público muito maior como conseqüência
(quase 178 mil exemplares vendidos apenas de The Sovereignty of God, por
exemplo). Seu biógrafo Iain Murray observou: “A difundida circulação de seus
escritos após sua morte tornou-o um dos mais influentes autores evangélicos da
segunda metade do século XX”. Familiarizado com toda a gama da verdade, Pink
raramente se desviou dos grandes temas: graça, justificação e santificação. A
nossa geração tem com ele uma grande dívida, pela permanência da luz que ele
lançou, pela divina graça, sobre a verdade da Bíblia Sagrada. Seus escritos
lançaram a faísca que deu início ao reavivamento da pregação bíblica e levaram
muitos leitores a focalizarem o coração na vida de acordo com a Palavra de
Deus.
Algumas frases de A.
W. Pink:
• “A tendência da moderna teologia — se se pode chamá-la de teologia — é
sempre rumo à deificação da criatura ao invés da glorificação do Criador”.
• “Não perguntamos: ‘Cristo é seu Salvador’, mas: ‘É Ele, real e
verdadeiramente, seu Senhor?’ Se Ele não
for seu Senhor, então, com a mais absoluta certeza, Ele não é seu Salvador”.
• “O fundamento de todo verdadeiro conhecimento de Deus deve ser uma clara apreensão mental de Suas perfeições como
reveladas nas Escrituras. Não se pode confiar, adorar ou servir a um Deus
desconhecido”.
• “O Deus deste século vinte não se assemelha mais ao Soberano Supremo das Escrituras Sagradas do que a bruxuleante
e fosca chama de uma vela se assemelha à glória do sol do meio-dia. O Deus de
que se fala atualmente no púlpito comum, comentado na escola dominical em
geral, mencionado na maior parte da literatura religiosa da atualidade e
pregado em muitas das conferências bíblicas, assim chamadas, é uma ficção
engendrada pelo homem, uma invenção do sentimentalismo piegas. Os idólatras do
lado de fora da cristandade fazem “deuses” de madeira e de pedra, enquanto que
os milhões de idólatras que existem dentro da cristandade fabricam um Deus
extraído de suas mentes carnais. Na realidade, não passam de ateus, pois não
existe alternativa possível senão a de um Deus absolutamente supremo, ou nenhum
deus. Um Deus cuja vontade é impedida, cujos desígnios são frustrados, cujo
propósito é derrotado, nada tem que se lhe permita chamar Deidade, e, longe de
ser digno objeto de culto, só merece desprezo”.
Livros traduzidos no
Brasil:
• Attributes of God (Os Atributos de Deus,
Editora PES)
• Profiting from the Word
of God (Enriquecendo-se com a Bíblia, Editora Fiel)
• Studies on Saving Faith
(Estudo sobre a Fé Salvífica, Site Monergismo.com)
• The Doctrine of
Justification (A Doutrina da Justificação, Site Monergismo.com)
• The Seven Sayings of
the Saviour on the Cross (Os Sete Brados do Salvador sobre a Cruz, Site Monergismo.com)
• The Sovereignty of God (Deus é Soberano,
Editora Fiel)
[10]
Nota do tradutor: Isaías 53.2.
[11]
Nota do tradutor: Nas versões brasileiras ARC, ARA e
NVI, fica mais nítido o fato de que o versículo faz referência a um ato
passado, e não contínuo. Nelas lemos: “... pelos transgressores intercedeu”.
[12]
Nota do tradutor: A ARC trás “por erro”, tanto no
versículo 24, como no 25. A ARA traduz o versículo 24 como “por ignorância” e o
25 como “por erro”. A KJV, versão utilizada por Pink, traduz os dois versículos
como “por ignorância”, deixando o entendimento da passagem mais claro e sendo
mais coerente, visto que em ambos os versículos o termo hebraico é o mesmo, a
saber, hggv.
[13]
Nota do tradutor: 1João 1.7.
[23]
Nota
do tradutor: Na versão do autor, ou seja, a KJV. A ARC trás “e”, enquanto a ARA
trás “contudo”.
* Deveria ser adicionado, à guisa de explicação, que é o
aspecto judicial que temos tratado aqui. O perdão restaurador - que é o trazer
de volta, novamente à comunhão, um crente que pecou - tratado em 1João 1.9 - é
outra questão totalmente distinta.
[25]
Nota do tradutor: Observe o leitor também que,
naquelas três cruzes, podemos ver toda a humanidade
ali representada, nas pessoas do pecador obstinado, do pecador penitente e de Cristo, único homem sem
pecado.
ali representada, nas pessoas do pecador obstinado, do pecador penitente e de Cristo, único homem sem
pecado.
[31] Nota do tradutor: Versículo
traduzido diretamente da “Authorised Version” (KJV) inglesa usada pelo autor.
[32]
Nota do tradutor: trecho vertido diretamente da King
James Version do original. O autor aqui usa o termo com certa liberdade, já
que, na época em que foi entregue a KJV, impotent era palavra usada para se
referir também a pessoas inválidas, sem forças (que é o contexto da passagem
citada), como corretamente o trazem as nossas tradicionais edições em
português.
[33]
Nota do tradutor: em inglês, work significa tanto
‘trabalho’ quanto ‘obra’. Jogo de palavras do autor.
[36]
Nota do tradutor: Romanos 10.14.
[46]
Nota do tradutor: Hebreus 7.25.
[47]
Nota do tradutor: Efésios 3.20.
[48]
Nota do tradutor: Isaías 53.11.
[49]
Nota do tradutor: o autor se fixa sempre na
tradicionalíssima Bíblia inglesa King James Version e, por não termos uma
edição portuguesa que a ela corresponda integralmente aqui, preferimos fazer a
tradução direta. Porém, as nossas versões vernáculas trazem os termos
“escândalo”, “tropeço”, ou “escandalizar”, “tropeçar”, bem mais adequados.
Acontece que, na época em que a KJV foi entregue, o verbo to offend tinha o
sentido de levar a tropeçar ou a pecar.
[50]
Nota do tradutor: Efésios 6.10.
[53]
Nota do tradutor: o autor inicia “filho” com
maiúscula, no original, e o faz com certa liberdade, já que essa palavra não é
encontrada assim nem versão inglesa por ele empregada. Preferimos nos ater ao
original, porém.
[54]
Nota do tradutor: João 1.29.
[57]
Nota do tradutor: Citação livre de 1Reis 8.57.
[58]
Nota do tradutor: Salmo 37.25.
[59]
Nota do tradutor: Isaías 53.5.
[66]
Nota do tradutor: Romanos 8.32 (Novo Testamento
Edições Paulinas).
[67]
Nota do tradutor: O autor já foi partidário da
controvertida teologia dispensacional, elaborada por J. N. Darby e difundida
por C. I. Scofield. Depois se arrependeu, tanto que escreveu uma obra atacando
virulentamente tal ensino, A Study of Dispensationalism, que pode ser acessada
em http://www.pbministries.org/books/pink/Dispensationalism/dispensationalism.htm . Está nos planos do site Monergismo.com a tradução para o
português desse livro, se nosso Senhor o permitir.
[70]
Nota do tradutor: Hebreus 1.3.
[73]
Nota do tradutor: Trecho de um hino. No original: He suffered
in our stead, he saved his people thus;/The curse that fell upon his head, was
due by right to us./The storm that bowed his blessed head, is hushed for ever
now/And rest Divine is mine instead, while glory crowns his brow.
[76]
Nota
do tradutor: Na versão portuguesa de D. Vicente M. Zioni (Novo Testamento
Edições Paulinas).
[77]
Nota
do tradutor: Tradução alternativa de João 1.14, escolhida pelo autor, pouco
comum mas perfeitamente válida.
[78]
Nota do tradutor: Cf. capítulo primeiro da Epístola.
[80]
Nota
do tradutor: Na versão portuguesa de D. Vicente M. Zioni (Novo Testamento
Edições Paulinas).
[81]
Nota do tradutor: Isaías 53.7.
[98] Nota do
tradutor: No original: I came to Jesus as I was, /Weary, and worn, and sad; /I
found in him a
resting place, /And he has made me glad. Trecho de um hino de Horatius Bonar, composto no século
XIX. Uma versão portuguesa pode ser encontrada no Cantor Cristão (hinário dos batistas brasileiros), sob o número 394.
resting place, /And he has made me glad. Trecho de um hino de Horatius Bonar, composto no século
XIX. Uma versão portuguesa pode ser encontrada no Cantor Cristão (hinário dos batistas brasileiros), sob o número 394.
[99]
Nota do tradutor: Cf. Atos 20.28 e 1Pedro 1.18,19.
[100]
Nota do tradutor: Gr. Τετελεσται.
[101]
Nota do tradutor: Realmente, tanto a Authorised
Version usada pelo autor quanto a nossa tradicional Bíblia de Almeida (em
qualquer de suas variantes), não fazem essa importante distinção. Isso se deve
à influência que a Vulgata exerceu sobre ambas as traduções, já que essa traz
“perfuraram minhas mãos e pés” em Sl 22.16, sem dúvida induzida por Is 53.5,
mas o fato é que nenhum dos evangelistas aludiu ao primeiro no relato da
Paixão.
[102]
Nota do tradutor: Marcos 4.39.
[103]
Nota do tradutor: Entretanto, notar que a profecia de
Ml 4.5,6 não foi cumprida literalmente na época do primeiro advento de Jesus, e
é nosso Senhor mesmo quem o declara de maneira ineludível em Mt 11.14 e
17.10-13. Por seu turno, o apóstolo Pedro (At 4) já dá como realizada a
profecia de Sl 2.1,2, só que na pessoa dos discípulos (pois persegui-los e
rejeitá-los é perseguir e rejeitar o seu Mestre, cf. At 9.4,5 e Lc 10.16).
[107] Nota do tradutor: No original: The
Head that once was crowned with thorns/ Is crowned with glory now;/ A royal
diadem adorns/ The mighty Victor's brow./ The highest place that heaven
affords/ Is His, is His by right,/ The King of kings and Lord of lords,/ And
heaven's eternal Light;/ The Joy of all who dwell above,/ The Joy of all below/
To whom He manifests His love/ And grants His name to know. Trecho de um hino
de Thomas Kelly (1769-1854), composto em 1820 e parte integrante de The
Handbook to the Lutheran Hymnal (hinário dos luteranos de língua inglesa), #
219 ("The Head That Once was Crowned with Thorns").
[109] Nota do tradutor: Cf. Jo 14.26; 2Tm 3.16
(“divinamente inspirada”: literalmente, “sopradas por Deus”. Em grego, o verbo “soprar” é da mesma raiz do
substantivo “espírito”)
[110]
Nota do tradutor: Cf. Jo 16.13.
[113]
Nota do tradutor: Em sua época, o autor foi uma das
poucas vozes a se erguer vigorosa e categoricamente contra o arminianismo, que
então começava a grassar até mesmo em grupos outrora francamente calvinistas,
como os batistas.
[124]
Nota do tradutor:
No original: Upon a Life I did not live,/ Upon a Death I did not die,/
Another’s death Another’s life/ I cast my soul eternally/ Bold shall I stand in
that great day,/ For who, aught to my charge can lay?/ Fully absolved by Christ
I am,/ From sin’s tremendous curse and blame. Trecho
de um hino de Horatius Bonar (1808-1889).
[125]
Nota do tradutor:
No original: Free from the law, O happy condition!/ Jesus hath blest and there
is remission./ Cursed by the law and dead by the fall,/ Grace hath redeemed us
once for all. Trecho de um hino de P. P. Bliss
(1838-1876). Uma versão portuguesa dessa composição pode ser achada no Cantor
Cristão batista, # 376 (“Salvação Perfeita”).
[141]
Nota do tradutor: Atos 3.15.
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